Volta ao Mundo em 80 Horas – II

II – O Diagnóstico

– O quê?…

– Eu disse: SENTA AÍ!

Sentei. Para. Pensa. Respira. Porra, cadê o ar? Ah, é! O ar. Foi isso. Falta de ar. Lembrei. Fui pra Santa Casa. Aliás, ESTOU na Santa Casa. E quem é essa mandona? A Marcela? Ah, é! Ela veio comigo. Ela estava no Jurídico. Também lembrei. Nah! É mesmo coisa de mulher esse negócio de se preocupar à toa!

Não demorou muito e já fui atendido (“pré-triagem”, eu diria), a médica fez as perguntas que tinha que fazer e – já esperava por isso – recomendou chapa do pulmão e checar o coração. Eu teria voltado para sala de espera se, ao levantar, ali mesmo, já não tivesse tropeçado na cadeira e me apoiado na parede – que, diga-se de passagem, em vez de sólida, ficava indo de lá para cá…

Nesse momento apareceu meu amigo Torquemada, que trabalha no local, e me ajudou a ir até a sala de raio-x. Também não demorou muito e fizeram as chapas (já devo estar ficando radioativo depois de tantos anos me chapeando no decorrer da vida) e o próximo passo seria o eletrocardiograma.

“Vem comigo”, me disse o Torquemada.

E esse “vem comigo” era para subir uma rampa digna da Escadaria da Penha. Mas, dada minha peculiar condição, em vez do habitual “nem fodendo”, que seria minha resposta tradicional, resolvi aceitar. Olhei pra cima, respirei fundo – e, lógico, não consegui respirar porra nenhuma – preparei-me para escalar aquilo bem passo a passo.

– Não, não, senta aqui.

Olhei pra trás. Uma cadeira de rodas e, como piloto, um gordinho com cara de preocupado, meio que avaliando o tamanho da rampa em comparação com o tamanho da besta que vos escreve.

– Cê tá me zoando…

– Não tô não. Trate de sentar aí, rapaz, que você não está bem.

Olhei novamente para a rampa, para a cadeira, para o gordinho, suspirei e cedi. Que seja. E uma vez que, Professor Xavier que me tornei, já estava acomodado na cadeira de rodas, não sem sofrimento o rapagote me levou até um quarto para o devido atendimento. Chegou suando e respirando fundo (que inveja!). Mesmo passado tanto tempo, ainda estou com dó dele. Provavelmente deve ter pedido o resto do dia de folga…

Uma vez acomodado na cama (ligeiramente menor que eu, como sempre), já sem calçados, pediram que abrisse a camisa para colocar os eletrodos.

– Xiiiii…

Não, esse não fui eu. Foi a enfermeira. Imaginem uma pessoa com o peito peludo. Não, não ela, eu (seus pervertidos…). Aquém de um Tony Ramos, mas além do considerado “normal”. Já tentou colar um pedaço de fita crepe na grama? É mais ou menos a mesma coisa que tentar colar eletrodos no meu peito.

– Melhor tirar a camisa. Aliás, o cinto também, pois o metal pode afetar o resultado. Aliás do aliás, vamos tirar as calças também. A senhora se incomoda?

A “senhora”, no caso, era a Marcela, ainda me acompanhando. Situação interessante, pois, na ausência do Torquemada, parece que as enfermeiras estavam achando que, enquanto acompanhante, seria minha esposa. Ela sorriu e até mesmo abriu a boca para responder, mas decidi que, do alto de toda minha educação, finesse e cavalheirismo que me é característico, aquele seria um bom momento para intervir, antes que se tornasse uma “opção”.

FO. RA.

Rindo às pampas, ela saiu da sala.

Enfim, calças fora, com um pouco de custo, até que deu. Liga maquininha, cola eletrodo que descolou, mede, cola o outro que também descolou, imprime rapidamente antes que descole mais algum, chama o médico de plantão.

E analisando aquele monte de risquinhos, ele me veio com essa:

– Senhor Adauto, não é? Bem, antes de mais nada gostaria de saber se o senhor fez algum esforço físico fora do comum ou passou recentemente por alguma situação de estresse?

Esforço físico? Eu? Até para ir no boteco da esquina eu vou de carro que é para não cansar… Quanto ao estresse? Tenho oito anos de estresse praticamente diário, meu caro! Nem o Capitão Kirk aguentaria o que já passei! Só que não respondi nada disso.

– Hoje, em particular, não. Nada.

– O que o senhor teve aqui foi uma disfunção arterial coronária, caracterizada principalmente pela dor no peito e a dificuldade na respiração, o que claramente evidencia a ocorrência da assim chamada angina pectoris.

Eu sinceramente acho que os médicos fazem isso de propósito. Tudo bem que nós, advogados, muitas vezes passamos a falar “juridiquês” até mesmo se o perceber, mas o caboclo tá falando com um paciente, catzo! Não resisti:

– Doutor, em português, por favor.

– O senhor teve um pré-infarto.

– Hmmm…

– Ou seja, situações como esta são definidas por um protocolo médico e, segundo esse protocolo, o senhor vai ter que ficar por mais um tempinho internado em observação, ok? Passar bem.

E se foi.

Antes mesmo que eu pudesse perguntar qual seria a definição dele para “um tempinho”, olhei para o Torquemada. Seus olhos brilhavam de sacana satisfação…

– No mínimo pelas próximas 12 horas, você é meu! Huá, huá, huá, huá!!!

Engoli em seco.

Bem, como sempre digo, já que o inferno é inevitável, que se abrace o capeta.

Assim, o melhor naquele momento seria informar a situação para algumas poucas pessoas na devida ordem de importância e relevância.

Ou seja, primeiramente liguei pra minha Chefa.

Que, óbvio, sendo quem é, já sabia o que tinha acontecido, onde eu estava e até mesmo qual o diagnóstico. Levei a bronca (no bom sentido) que já sabia que ia levar, me avisou que o Torquemada iria confiscar meus telefones e que fosse descansar e me recuperar. E, sim, isso era uma ordem.

Bão, até agora tudo bem. Agora vinha a parte difícil.

Isso mesmo: ligar para a Dona Patroa.

– Oi? Mi? Tudo bem? Pode falar um minutinho? Então. Hoje quando eu estava vindo para o trabalho começou a me dar um pouco de falta de ar, de tontura e eu até achei que fosse por conta de um pouco de fome… Daí, chegando no Jurídico, comi alguma coisa, lavei o rosto e não melhorou – antes o contrário, comecei a ter um pouco de dor no peito, tipo uma pressão, sabe? Aproveitei que a Marcela estava por ali e fomos para a Santa Casa, onde cheguei totalmente sem ar, mas ainda assim consegui fazer a ficha, meio que desmaiei, mas já fui atendido em seguida, encaminhado para uma chapa de pulmão e em seguida para um eletrocardiograma. O diagnóstico foi que eu tive uma situação de pré-infarto – mas tá tudo bem! Pode ficar tranquila. Já fui medicado, só que o protocolo médico determina que vou ter que ficar aqui pelo menos pelas próximas 12 horas, então tô te ligando só pra você saber, ok?

Silêncio.

– Alô? Oi? Você ainda está aí?…

– QUEM. É. ESSA. MARCELA?

Meus deuses! Como é que vocês mulheres têm esse filtro auricular que faz com que ouçam só o que querem ouvir? A um certo custo expliquei novamente a situação, com calma e com detalhes, e desta vez parece que ela compreendeu. Eu acho.

Enfim, esclarecido o necessário, Torquemada deu aquela risadinha que só ele sabe dar e, com uma batidinha no meu ombro, já foi falando:

– Só é preciso aguardar mais um pouquinho porque neste exato momento tá liberando um leito. E aí? Pronto para dar entrada na U.T.I.?

(Início da Saga)                        (Continua…)

Volta ao Mundo em 80 Horas – I

(Resolvi lhes contar um pouco do recente perrengue que passei. Não, não se assustem nem se preocupem, pois já tá tudo bem, mas acho que todos por aqui também já sabem o quanto eu não consigo resistir ao dramático… Então, crianças, é isso mesmo: senta que lá vem história!) 😉

I – Meu reino por um balão

Terça-feira, 25 de outubro de 2016.

O dia até que começou tranquilo. Um tanto quanto abafado, com aquela sensação de se estar dentro de uma panela de pressão e que normalmente antecede uma daquelas chuvas das boas. No trabalho, apesar de algumas “missões impossíveis” (nada de novo sob o sol da Dinamarca), tudo relativamente tranquilo. Tanto, que me dei ao luxo de me atrasar um bocadinho só para dar continuidade a uma reorganização que estou fazendo no escritório lá em casa…

Coisa de uma hora e meia depois do habitual, já tendo tomado meu cafezinho com um bom pão com manteiga (lá pelas seizóra) e deixado a criançada na escola… #partiutrabalho

Rota de sempre, caminho de sempre, trânsito de sempre – talvez até um pouco mais leve que o normal.

E eis que, lá pelas nove e quinze, cadê o ar?

Não faltava muito pra chegar, tinha acabado de entrar numa das avenidas principais da cidade e, por mais que tentasse, por mais que puxasse, o ar teimava em não entrar nos pulmões! Pensei no posto do Corpo de Bombeiros que havia ficado há pouco mais de um quilômetro atrás. Sem chance de retorno.

E essa tontura, meu Deus?

Lembrei das crianças.

Lembrei da minha família.

Lembrei dos trabalhos pendentes.

Lembrei que meu carro não tem seguro.

Ou seja, desmaiar NÃO seria uma opção!

Abri os vidros totalmente, liguei o ventilador no máximo (ah, se eu tivesse um ar condicionado!) e, resoluto, segui até o trabalho – que nem estava tão longe assim.

Entrei no estacionamento como de praxe, parei o carro como de praxe, debaixo da árvore de praxe e, sob a sombra de praxe, saí, me espreguicei, me contorci, me alonguei e tentei respirar profundamente. Até que miorô um cadinho… Mas a tontura ainda me deixava tonto. “Deve ser fome”, murmurei para comigo mesmo.

Cheguei no prédio, fui entrando, passando sala por sala e dando um “oi” mais seco que o tradicional. Abri a janela de minha sala e, mais uma vez, com os braços abertos, ainda segurando os trincos, tentei puxar o ar para dentro dos pulmões.

– Merda.

Meio que tomado por aqueles atos mecânicos do dia-a-dia, liguei o computador, abri o jornal por sobre a mesa, vislumbrei a caixa de entrada (a real, não a virtual), peguei um café, duas bolachas de maizena, resmunguei algo para quem estava na sala, voltei para minha mesa, vislumbrei a caixa de entrada (a virtual, não a real), retornei uma ligação de uma amiga (trabalho, trabalho, trabalho – desde cedo!) que precisava de ajuda para outra amiga e que, por fim, ainda acabei delegando para uma terceira amiga. Confuso, eu sei, mas ao contrário do que imaginam, nem sempre sei de tudo!

Respirei fundo e…

– Merda!

Cadê o ar, meu Deus? Fui até o banheiro, lavei o rosto com água em abundância e nem me dei ao trabalho de enxugar. Sentei no sofazinho que tem na minha sala (porcaria de sofá baixo!) e tentei relaxar.

Nisso, Mitchel veio falar comigo. Um caso, outro caso, uma preocupação daqui, um alerta dali e tudo que eu conseguia era ver sua boca se mexendo e um ligeiro murmúrio ao fundo, sem conseguir me concentrar e sentindo os ouvidos começarem a ficar ligeiramente tapados, como se estivesse num carro, descendo a serra, rumo ao mar.

– Cê tá bem, cara?

– Sei lá, tô meio zoado…

– Por que você não vai num médico, então?

– Se ficar ruim, eu vou.

– TEIMOSO!

Disse e saiu.

Imagina! Teimoso, eu? Talvez um pouco turrão. Ligeiramente cabeça dura, às vezes. Dono da verdade, quase sempre. Mas teimoso? Ah, não, isso não!

Foi mais ou menos nesse momento que um invisível filhote de elefante resolveu que deveria ficar sentado bem em cima do meu peito, pressionando e dificultando ainda mais o que já estava difícil: respirar.

Daí comecei a suar frio.

E, então, disse para mim mesmo: “Mim mesmo, tô começando a achar que tem algo de errado comigo…” Ainda zonzo, desci um andar e, da porta da sala do Mitchel, já soltei:

– Cara, você tem razão, não tô legal. E ói que já é a terceira vez este ano que você tem razão, hein? Parabéns! Vou dar um pulinho aqui na Santa Casa e já volto. Má, vamcomigo?

“Má” era a Marcela, que trabalha na Saúde, e há dias estava acampada na sala do Mitchel, ajudando num processo.

– Oi? Não, péra. Deixa eu arrumar minhas coisas…

– Tô indo, fui.

E, de fato, fui.

Mais dois lances de escada, meio bêbado de zonzeira (que, garanto, é diferente de estar meio zonzo de bebedeira), passei pela porta e tomei o caminho da Santa Casa, em plenos e firmes passos trôpegos. Demorou só uns cem metros para ela, ofegante, me alcançar.

E, cerca de quinhentos metros depois, após quase ter sido atropelado ao atravessar a rua e tropeçado algumas vezes (“toma cuidado, pois se você cair, vai ficar no chão mesmo, até porque não aguento com um homem desse tamanho”, foi a recomendação que vagamente lembro ter ouvido), ainda tendo recebido uma ligação da secretária da Chefa (“não, lamento, não posso dar um pulinho aí, pois neste exato momento estou dando um pulinho no hospital”), chegamos na recepção da Santa Casa.

No balcão de atendimento provavelmente devo ter balbuciado algo sem sentido, porque o atendente ficou me olhando com aquela mais profunda cara de “ahn?”… Pôxa, não era óbvio que eu estava passando mal, tonto, suando frio e sem ar? Bastava olhar pra mim, catzo! Minha vontade era falar “me dá um balão de oxigênio e tá tudo certo”, mas, sabe-se lá como, tive forças (e, principalmente, paciência) para acabar de passar meus dados, nome, RG, CPF, endereço, etc, etc, etc.

Foi então que o mundo ficou mudo e, aos poucos, tudo foi ficando leve, leve, muito leve, branco, branco, cada vez mais branco, até acabar sumindo de vez…

(Continua…)

O Velho e o Moço

O velho é rabugento; o moço é vivaz. O moço prefere a guerra; o velho prefere a paz. O velho está sempre cansado; o moço está sempre com disposição. O moço quer se apaixonar; o velho já esqueceu o que é paixão. O velho tem um coração lacrimoso; o moço sequer sabe o que é um pranto. O moço quer somente agitação; o velho quer a quietude de um canto. O velho se sente sozinho; o moço sempre está com alguém. O moço é ganancioso; o velho contenta-se com o que tem. O velho gosta de perder-se nos pensamentos; o moço quase nunca pensa pra falar. O moço quer a corredeira do rio; o velho quer a profundidade do mar. O velho sabe apreciar a brisa; o moço gosta da força da ventania. O moço cavalga com fúria os campos; o velho com calma conduz sua montaria. O velho se encanta com o perfume das flores; o moço aprecia sua delicadeza. O moço quer a luxúria; o velho quer a beleza. O velho sabe enxergar o que é belo; o moço é cego e sem calma. O moço corre atrás de um momento; o velho fica na procura da alma. O velho adora crianças; o moço demonstra paciência. O moço prefere a loucura; o velho prefere a prudência. O velho se sente preso; o moço só vê liberdade. O moço quer a vida noturna; o velho quer fugir da cidade.

O velho e o moço; o moço e o velho…

Mas o que é do velho sem o moço? Faltar-lhe-ia a fagulha da vivência. Mas o que é do moço sem o velho? Faltar-lhe-ia a sabedoria da prudência. É certo que o moço muitas vezes exagera; mas não é tão diferente do que o velho faz. De quando em quando o velho ensimesma-se em seu mundinho; e o moço tem que suportar as consequências que isso traz. O que ambos, moço e velho, velho e moço, precisam aprender é a ter equilíbrio em suas vidas. Pois, ainda que não percebam, mesmo feita de opostos, ambas são muito parecidas. Um precisa do outro, o outro precisa do um; sem se completar não chegarão a lugar nenhum!

O moço e o velho; o velho e o moço…

O que lhes falta é tempo; o que lhes falta é alento.

Conseguirão?

Suportarão a carga de sua própria lambança?

É o que pergunto aos meus botões e em resposta somente um silêncio de amarga esperança…

Férias de julho: e agora?

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Outro dia, na Carta Capital, li um texto bastante interessante: Quando as crianças saírem de férias (Mãe nenhuma se preocupava com a chegada das férias dos filhos), de autoria de Alberto Villas, e pensei comigo mesmo: “Comigo mesmo, taí um texto muito bom! Disse tudo!” Mas… Ato contínuo, repliquei: “Cara, será mesmo? Pelo jeito a realidade dele era um pouco diferente da nossa… Será que não dá pra dar uma corzinha mais pessoal nessa história?” Ao que emendei: “É… Pensando bem, até que é…” E fui obrigado a concordar: eu tinha razão.

É que nos dias de hoje, quando se fala nas “férias-do-meio-do-ano” (como era chamada na minha época), as mães já começam a se desestabilizar física, química e espiritualmente num nível subatômico – principalmente as que trabalham! Muitas vezes o descabelamento – tanto capilar quanto emocional – já começa muito antes, quando os pais traçam planos mirabolantes para dar conta de quatro – QUATRO! – míseras semanas com sua prole em casa. E sim, digo “pais” porque, diferente do passado, nos dias de hoje as responsabilidades são muito mais bem divididas e as decisões são tomadas em conjunto de modo a encontrar a melhor saída para a família como um todo. E como todo planejamento sempre dá com os burros n’água e como todo pai tem um quê de Pôncio Pilatos, invariavelmente sobra para a mãe resolver essa equação aparentemente insolúvel de preencher o vazio que entope o tempo dessa criançada moderna quando está de férias…

A mídia como um todo explora esse “filão” (como se não houvesse nada mais relevante pra midiar) e passa dias e mais dias apresentando entrevistas, reportagens, cadernos especiais, com tudo do bom e do melhor (segundo eles) para manter ocupado nossos pequenos petizes.

É um tal de Hopi-Hari num dia, McDonalds noutro, cinema no seguinte, casa dos avós, casa dos amigos, campeonato on line, shopping… Gente, para! Pega toda essa grana gasta com supérfluos e logística e vão todos viajar que vocês ganham muito mais!

Não me lembro jamais, durante toda minha infância, de que alguma preocupação tenha passado pela cabeça da minha mãe sobre o que ela faria comigo e meus dois irmãos no período de férias. Viajar? Ela, costureira; meu pai, mecânico, ou seja: somente quando ELE estivesse de férias (e calhasse de nós também) é que pintava uma ou outra viagem. Caso contrário as férias eram nossas, mas eles continuavam na lida como sempre.

Resumo da ópera: nossas férias eram por nossa própria conta.

A ordem cronológica em casa era a seguinte: meu irmão mais velho, seguido, cerca de um ano e meio depois, por meu irmão do meio e na sequência eu, seis anos depois… Primogênito, do meio e pentelho. Eles tinham muito mais afinidade entre si do que comigo, então o jeito era me virar.

E como me virava!

Invariavelmente, sozinho ou com outros amigos, o quintal da casa era nosso reino. Às vezes o de casa, às vezes os de outras casas. Acordar cedo, buscar pão quentinho na padaria da esquina, comer todo o miolo de ao menos um pão antes de chegar em casa, tomar café com leite e pão com manteiga, sair correndo antes que seu irmão do meio desse o habitual esporro por conta do pão sem miolo que tinha ficado pra trás, e já ir tramando qual seria a “aventura” do dia, cavando, correndo, jogando, lutando (com os chamados “hominhos”) quando as figuras do Forte Apache – tanto o General Custer quanto os índios – combatiam contra os soldadinhos verdes de plástico, invariavelmente auxiliados por cavaleiros da Idade Média, e por aí afora até onde nossa imaginação permitisse…

Os finais de semana das “férias-do-meio-do-ano” (já não expliquei o porquê do nome?) também eram mais divertidos, pois costumávamos acompanhar meu pai e outros amigos da turma da oficina para as pescarias na represa. Acordávamos com o barulho da picadeira lá no curral, no alto do morro, e já subíamos a porra do interminável morro pelo meio do mato com nossas canequinhas esmaltadas para aproveitar um leite quentinho, direto da fonte. Cobras? Aranhas? Outros bichos peçonhentos ou não que estivessem de tocaia no meio desse mato? Deus sempre protegeu as crianças, os bêbados, os loucos e eu (que sou uma mistura de todos anteriores).

Debulhar milho para alimentar as galinhas e os porcos, correr atrás dos quatrocentos gatos que zanzavam por ali vindos sabe-se lá de onde, rolar morro abaixo com os cachorros do sítio (cães de caça, segundo o dono), comer todo o queijo prato destinado a pegar piabas no anzol, correr para o meio do milharal para fugir da bronca por ter comido o queijo prato (nem tava tão gostoso assim…), brincar de esconde-esconde no milharal, voltar todo cortado por conta das porcarias de folhas cortantes do milharal, inventar vários tipos de brinquedos munidos de um toco, dois carretéis de linha, um rolo de barbante e uma lata de sardinha (dá-lhe McGyver!), bem esse era mais ou menos nosso dia-a-dia na roça…

De volta à cidade (e ao quintal) vale lembrar que estamos falando de uma época do ano que normalmente faz frio, certo? Errado. Criança não tem controle de temperatura. Ficávamos descalços praticamente as férias inteiras (os sapatos Vulcabrás eram só para comparecer nas missas de domingo), normalmente sem camisa ou de camisa aberta, encardidos a maior parte do tempo, com leves nuances de higiene somente à hora do almoço, quando minha mãe chegava na porta da cozinha e gritava: “Vem comer, que tá na mesa!”, que se constituía basicamente de feijão, arroz, angu (ANGU, não “polenta” – um dia explico), às vezes um bife, outras batata frita, coisas do gênero – ou seja, uma refeição simples, frugal e deliciosa para os esfomeados que não paravam um minuto sequer.

Aliás, domingo era dia diferente! Missa das crianças pela manhã, pipoca na praça em seguida, Domingo no Parque ao chegar em casa, macarrão e frango ensopado no almoço. Frango assado somente em dias de festa ou quando tínhamos visita. E um detalhe: o frango era comprado vivo, na feira, para ser totalmente preparado em casa. Também num outro dia eu conto os detalhes…

Os limites do quintal eram extrapolados somente para comparecer nos campinhos perto de casa (a praça do coqueiro, bem em frente, as saudosas “Três Quadras”, quase do lado e o campinho das Três Árvores, morro abaixo). As atividades extracurriculares envolviam participar de guerras de mamona, soltar pião, jogar vôlei (já não disse que futebol nunca foi minha praia?), soltar pipa (feito em casa – nada de comprar pronto), provocar as meninas, correr das meninas (CRI-AN-ÇAS… Lembram?), e – desafio dos desafios – enfrentar a descida da Rua do Cemitério numa corrida de carrinhos de rolimã. Também construído em casa. Skate, patins e outras modernidades fazem parte da década de oitenta, que viria bem depois.

“Mãe, vô sair.”

“Vai pra onde, filho?” – perguntava, absorta nas costuras.

“Lá fora.”

“Tá, não demora.”

Quando muito, voltava à noitinha…

Invariavelmente encardido e com algum joelho ralado, cotovelo esfolado, sem o tampão do dedão do pé, ou com alguma unha roxa. Água, sabão e Merthiolate. Não esses de hoje, que mais parecem uma água. Os daquela época tinham que ser ministrados à força, quando minha mãe alicatava meu braço e sob um veemente “NÃO,NÃO,NÃO,NÃO,NÃO,NÃO,VAIARDER!!!!” ainda assim ela passava o remédio.

Mas depois tinha o soprinho…

E em dias de chuva, então? Onde uma criança se esconde? Na chuva, é lógico! E naqueles de chuva forte, o esporte radical favorito de dez entre dez moleques era nadar de barrigada na corredeira do meio-fio!

À noite nada de Internet, Netflix, TV a cabo, o escambau! Se quiséssemos assistir algo era o que tinha na TV aberta e pronto. Por isso mesmo a estratégia era nos afastarmos da sala, onde reinava a portentosa TV Telefunken de seletor e com UHF (que meu pai recuperou das machadadas de meu padrinho – mas essa é outra história), e nos embolávamos no quarto, para fazer pistas em nossas cobertas para os carrinhos Matchbox ou ler algum livro ou gibi antes de dormir. Nos finais de semana havia uma sessão de sábado cujo nome não consigo lembrar e era onde passavam bons e inéditos filmes (precursor bem antigo do tal do Tela Quente) e, lógico, no domingo a janta era obrigatoriamente na sala, assistindo o humor totalmente politicamente incorreto de Os Trapalhões. Creio que já comentei por aqui antes que, se fosse nos dias de hoje, um programa desses jamais emplacaria ante a sanha dos “defensores da moral e dos bons costumes”: um mulherengo conquistador, um efeminado engraçadinho, um negro bêbado e um malandro safado…

Enfim, outros eram os tempos e poucas eram as opções. Talvez por isso mesmo. Éramos obrigados a exercer nossa criatividade num mundo só nosso, diferente daquele em que os adultos viviam. Não tínhamos jogos on line, videogames, Internet, celulares e nem nenhuma dessas distrações que fazem nossas crianças de hoje permanecerem horas a fio diante de um computador.

E nossas mães certamente eram muito mais desencanadas.

E felizes…

Cicatrizes

Hoje, logo após me levantar, já tendo enxaguado o rosto com água em abundância, comecei a olhar aquele sujeito que me mirava do outro lado do espelho. Aquela vetusta barba branca (outrora preta, num longínquo passado), o cabelo mais grisalho do que se poderia esperar (cada nova preocupação na vida, um novo fio de cabelo branco), olheiras cansadas, já denotando o acúmulo de responsabilidades dos últimos anos… Enfim, estava à procura de mim mesmo quando a percebi, ali, onde sempre estivera: uma pequena cicatriz do lado de meu olho esquerdo.

Não sem um sorriso me lembrei de quando adquiri essa, que talvez tenha sido a primeira de muitas outras. Criança, uns cinco anos eu acho, correndo desembestado e olhando pra trás, provavelmente por conta de alguma brincadeira ou traquinagem (sendo a segunda opção a mais provável), quando resolvi olhar pra frente… BONC! Tá, não foi bem esse o barulho, mas vocês pegaram o espírito da coisa. Dei de cara com o muro do vizinho, daqueles com chapiscão grosso, com pedra e tudo, formando uma camada totalmente não uniforme, com pelotas de cimento sobressaindo por todos os lados. É lógico que cheguei em casa aos berros, com um olho a mais no rosto. Do pouco que me lembro, sei que meu pai decidiu que não iria me levar para nenhum lugar para dar pontos, pois ficou com receio que, de alguma forma, aquilo afetasse minha vista.

E essa foi só a primeira de muitas outras cicatrizes…

Provavelmente a seguinte deva ser uma outra que tenho também no rosto, também do lado esquerdo, na base inferior da bochecha. Hoje, quando imberbe, muitas vezes quem olha acha que alguém me deixou uma marca de batom… Mas quando a adquiri, era bem diferente! Numa festa de casamento num local cheio de escuridões chamado Piraquara Clube, à beira do Rio Paraíba, a criançada se divertia na brincadeira de pega-pega. Eu inclusive. Devia ter uns sete, talvez oito anos… E, naquela correria no meio da escuridão, não mais que de repente senti bater em alguma coisa que esticou e me jogou pra trás, tal qual a corda de um arco que se retesasse antes de disparar a flecha. E a flecha era eu. Imaginei que fosse algum tipo de varal – que, de fato, era – mas após colocar a mão no rosto e vê-la voltar totalmente ensanguentada, só sei que saí aos berros a procurar meus pais, para desespero de todos na festa que viam aquele moleque gorducho empapado em sangue passando a seu lado. Mais tarde vim a saber que se tratava realmente de um varal, só que, conforme o costume dos antigos, de arame farpado (que era pra não precisar de prendedores). Isso me custou sete pontos na parte mais profunda da contusão e pequeninas outras cicatrizes que foram desaparecendo com o tempo, que vinham desde a orelha até o queixo, bem próximo de meu lábio inferior.

Após alguns anos de relativo bom comportamento, foi na adolescência que arrebentei meu joelho direito. A tropinha da época “rachava” uma cinquentinha para uso de todos e fui atrás do rapaz que estava com ela naquele dia. Casa bonita, com grades baixas, muros e paredes de ardósia. Bati a mão na grade e pulei para o lado de dentro para tocar a campainha. Toca, toca, toca… Nada! Ninguém em casa. Paciência. Do mesmo jeito que entrei foi o mesmo jeito que resolvi sair: pulando sobre a grade baixa. Mas calculei mal a distância e quando me arremessei por sobre a gradezinha enfiei o meio do joelho bem na quina da coluna de ardósia. Foi como abrir um livro. Só que no joelho. Apenas cinco pontos desta vez e a consciência de que voltar a dobrar a perna após um longo período de imobilidade é simplesmente uma droga.

Não muito tempo depois outra cicatriz, dessa vez por queimadura, na minha mão esquerda (ô ladozinho ativo!). Basicamente em decorrência de Longa Sina de Desastres, acho que uma de minhas mais arraigadas características desde que me conheço por gente. Pra todos efeitos foi por conta de prender a mão num escapamento quente enquanto consertava uma moto. Só pra constar: outra de igual monta e quase a mesma justificativa encontra-se hoje no peito de meu pé. Desta vez o direito.

A cicatriz seguinte foi mais “bem comportada”, digamos assim… É que fui acometido de um troço chamado cisto cóccix lombar, uma espécie de espinha eterna que fica bem em cima do último ossinho da coluna, quase lá na porta do… Bem, vocês sabem onde. Uma porcaria que dói pra diabo e não termina nunca, por mais que se esprema a maldita espinha. A remoção desse coiso é cirúrgica e – pasmem! – a cicatrização tem que ser feita de dentro pra fora, com trocas diárias de curativo, sem poder dar um ponto sequer. Foi quando fiquei uma temporada comportado em casa, de quina pra lua, lendo tudo que tinha pra ler, sob os cuidados de um enfermeiro amigo meu. E foi também quando, na época, minha cunhada entrou no meu quarto para “conferir o material” e poder esfregar na cara de meu irmão: “Isso sim é que é bunda! Não é como você, que tem que andar com uma carteira em cada bolso pra poder dar enchimento!”

Passada a vergonha – e a cicatriz – daquele momento, a próxima, clássica, dar-se-ia, muitos anos e uma ou duas vidas depois, quando do acidente, matéria exaustivamente explorada nas entranhas deste blog. Basta lembrar que dormi ao volante e atropelei uma desavisada árvore que passeava no meio da rua lá pelas onze e meia da noite. Me rendeu uma senhora de uma cicatriz na perna esquerda (garanto-lhes que ver o próprio osso enquanto sua pele cicatriza não é das experiências mais agradáveis), uma outra no pulso direito, decorrente de uma cirurgia que tive que fazer para remover um cisto que se formou por conta da trombada e, por fim, uma outra, longa, esqueci quantos pontos, no próprio joelho esquerdo, para uma vã tentativa de reaujuntar os ligamentos posteriores rompidos. Religou, mas a porra dói. O. Tempo. Todo. Às vezes mais, normalmente menos. Verdadeiro House encarnado, este sou eu, hoje.

Mas existem também cicatrizes totalmente ocultas que incomodam muito mais que qualquer uma das que citei. Cicatrizes do coração são dessas: perturbam quando não mais queremos lhes dar atenção e se fazem presentes nos piores momentos possíveis. E saibam que cicatrizes de paixões mal resolvidas são piores que as de amores sepultados. Enquanto estas somente coçam de vez em quando, aquelas não fecham, ficam expostas, doem quando querem e fazem nosso peito quase explodir. São difíceis de administrar, quase impossíveis de controlar. Somente com o tempo e com boa dose de indiferença (ou de uísque) conseguimos colocá-las em seu devido lugar.

E mais uma vez olhando para aquele espelho e me achando tão imperfeito quanto poderia me achar, encontrei meus próprios olhos. E também encontrei aquele meu próprio olhar que, mesmo nitidamente cansado, ainda era o mesmo olhar de dez, vinte, trinta anos atrás! Reconheci naqueles combalidos olhos o mesmo olhar de quando acordava quando criança, mirando outros espelhos, antes de sair para minhas estripulias.

Mas, apesar daquele meu olhar ainda estar ali presente, uma singela faísca num templo que caminha para a ruína e para o esquecimento, ainda assim os olhos são espelhos da alma

E quem meus olhos hoje vê, acaba por não perceber mais aquele meu olhar (mérito apenas de quem sabe me enxergar). Percebe apenas as cicatrizes. Da alma.

Cicatrizes causadas pelos desapontamentos, pelas desilusões, pelos fracassos. Sempre por conta de outrem – e, sim, tenho consciência de minhas culpas e responsabilidades, mas o que efetivamente marca a alma são as atitudes daqueles que logram nossas expectativas.

E por acreditar – porque sempre vou tentar buscar o melhor de cada ser humano que conheço – também sempre acabo por me machucar. Reiteradamente. De novo, de novo e de novo. Queria voltar a ter a singeleza da ignorância, que me permitia passar incólume a tudo e a todos: ignorava os pré-conceitos, ignorava as arrogâncias, ignorava as atitudes vis, ignorava as mesquinharias, ignorava as mentiras, enfim, ignorava a parte mais baixa que cada ser humano – sem exceção – possui dentro de si e utiliza para satisfazer suas próprias vontades, suas próprias crenças, seus próprios interesses.

E a vida em harmonia com a sociedade me parece algo cada vez mais distante…

As instituições estão falidas? Não, meus caros, o ser humano está falido.

Simples assim.

E mais uma vez, agora exausto por tantas conclusões, volto minha face para o espelho. Sim, estou velho. Velho e cansado. Como as estrelas…

Mas…

Mesmo as estrelas, ainda que velhas e cansadas – até as que já deixaram de existir – ainda assim não cumprem sua tarefa? Não são elas que existem para brilhar e dar vida e compartilhar vida? Não quero – não posso – crer que somos meros frutos do acaso, que meramente habitamos a terceira rocha que circunda um sistema solar periférico por conta de algum capricho da natureza, que nos tenha feito brotar de um nada só para que a esse nada voltemos. Creio, sim, no sagrado, no sentido traçado, no destino planejado. Que há Alguém lá do outro lado que se ri da infantilidade de todas essas minhas incertezas.

E, derradeira, vez, olho para o espelho. E lá está ele. Aquele meu olhar. Não mais fagulha, não mais mortiço. Agora ressurge pleno, vívido, sagaz, brilhando, fechando e dissipando as cicatrizes de minha alma. Dissipando minhas dúvidas. Gritando para mim que não devo me deixar abater. Não vou. Não por conta de outrem – jamais! A vida é, sim, bela – e azar daqueles que não sabem apreciá-la, presos que estão em suas próprias torpezas!

E, assim, nesse embaçado espelho, nesta fria manhã, por trás da barba e cabelos brancos, das rugas e das olheiras, consigo finalmente (re)encontrar meu ponto de fé, em tudo e em todos. E volto a enxergar novamente minha alma que brilha: criança que sou e sempre serei.

Até o fim de meus dias.