Caos…

Já lhes disse inúmeras vezes por aqui: a vida é caótica e não temos nenhum controle sobre ela. Quando muito um fluxo a se seguir e a se deixar levar. Uma correnteza.

Quanto antes tivermos consciência disso, quanto antes daremos os primeiros passos para a verdadeira felicidade… Ao menos é o que acho.

Temos que ter em mente que não temos controle de nada. Que quanto mais tentamos gerar controle e domínio sobre as coisas do dia a dia que nos cerca, mais tudo isso nos escapa pelas frestas entre os dedos de nossas mãos.

Mas, ainda assim, às vezes cansa…

Às vezes a realidade nos aborda com tantas variáveis ao mesmo tempo que, por mais que queiramos somente seguir o fluxo, a vontade é de fugir, deixar tudo pra trás, apertar o botão do “foda-se”… É uma insana corrida, onde de quando em quando estamos na frente, mas, noutros momentos, cada um de nossos problemas e adversidades, um a um, vai nos deixando pra trás…

E infelizmente não viemos com um alter ego que nos coloque de lado – ainda que por alguns momentos – e resolva todos nossos problemas de imediato…

Oi?

Não sabem do que estou falando?

Ora, do Capitão Caos, é lógico!

(Aumente o som e curta esse herói…)

😀

 

Trindade – III

– E aí, moçada?

– E aí?

A traseira do caminhão tinha apenas uma roda sobressalente deitada num canto, algumas lonas dobradas e cordas do outro, algumas vassouras, tudo mais ou menos perto da cabine do motorista, e sobre esse monturo de coisas, meia dúzia de gente.

Rapazes iguais à nós, com suas mochilas e sacolas, também na estrada também indo pra algum canto, também durangos. Começamos a trocar uma ideia – eles já saíram junto com o caminhão, também com destino ao litoral, o motorista era vizinho deles e topou levar aquela turminha pra praia.

– Legal! Vão pra onde?

– Ah, Caraguá mesmo. Lá na Martim de Sá.

Naquela época as praias do Centro eram muito feias e largadas, de modo que TODO MUNDO ia pra Martim de Sá. Pensando bem, as praias do Centro não são mais assim, e todo mundo CONTINUA indo pra Martim de Sá… Vai saber…

– E vocês?

– Estamos indo pra Trin…

– PULIÇA!!! PRO CHÃO!!!

Nos distraímos com a conversa e acabamos ficando desatentos…

E não, não é o que vocês estão pensando.

Não fomos cercados, alvejados ou vítimas de algum comando.

Simplesmente esquecemos do Posto de Guarda. Na realidade são dois (ou, na época, eram apenas esses dois): um logo no começo da Tamoios, saindo da zona urbana de São José, e outro bem no alto da serra. Vocês devem se lembrar que hoje em dia é proibido viajar (ou mesmo ser transportado) na carroceria de um caminhão aberto, certo? Então. Naquela época também era. E iria ser encrenca da grossa se o caminhão fosse parado por isso – e o que se viu foi um tal da rapaziada se atirar de peito no chão (a carroceria do caminhão era de madeira, com as laterais baixas e vazadas) e tentar se esconder no meio das lonas e cordas e outros quetais.

Dei uma olhada com o rabo dos olhos e vi os guardas lá dentro de sua cabine/posto/guarita/sei-lá-o-quê, olhando com desinteresse para o trânsito. Quase deu vontade de levantar e dar um tchauzinho só pra ver o que rolava – mas algo me disse que eu seria extremamente estúpido se fizesse isso. Talvez tenha sido apenas bom senso. Talvez tenha sido o Vilaça segurando minha garganta enquanto eu esperneava. Enfim, acho que nunca terei certeza…

Passado o “perigo”, logo após a última longa curva depois do Posto de Guarda, levantamo-nos descontraídos enquanto que o motorista passava um sabão na gente, pra que a gente prestasse atenção e, na próxima, ficasse esperto ANTES de chegar na fiscalização. Bem, acho que foi isso que ele disse, pois com o barulho do motor, o sacolejar da carroceria, um monte de adolescentes conversando e rindo, o vento nos ouvidos e o fato de ele ser um tanto quanto fanho – nada disso ajudou para dar uma melhor compreensão de suas palavras. Mas o recado foi entendido.

Aliás, por falar em vento…

Taí uma coisa que sempre gostei: vento. Quer me ver num mau humor desgraçado? Me encontre num dia quente, mormacento e de ar parado. E me aguente. Agora, quer me ver sorrir sozinho? Me dê um dia com vento. Sou daqueles que, andando na rua, louco entre o sãos, abre os braços para receber melhor cada vento, cada brisa, cada sopro que passa por mim.

Desde sempre gosto disso. Desde a mais tenra idade. Quando meu pai tinha um Jipe e íamos para a roça, o vento era presente em todos os cantos possíveis e imagináveis do veículo; mais tarde, com uma Variant (impecável até os dias de hoje), eu sempre escolhia sentar no banco atrás dele, pois ele preferia andar com o vidro aberto, se refrescando com o vento; foi no vento que, em casa, decolei de meu velocípede em alta velocidade e me esborrachei no chão, perdendo os sentidos; foi correndo contra o vento que perdi a noção de direção e, literalmente, bati de cara num muro de chapisco grosso (o que rendeu minha primeira grande cicatriz); foi numa noite de ventania, no escuro, brincando de pega-pega que, de novo literalmente, dei de cara com um varal de arame farpado (o que rendeu minha segunda grande cicatriz); o carrinho de rolimã me ajudava a desbravar o vento tanto quanto, anos depois, eu o faria com minha bicicleta…

E ali, naquele momento, na estrada, num dia que começava a ficar mais fresco graças às nuvens que resolveram tapar o sol, de pé em cima da carroceria de um caminhão, vento é o que não faltava!

Seguimos nosso rumo proseando um bocado, lembramo-nos de tomar todo o cuidado ao passar no segundo Posto de Guarda (“Pô, Vilaça! Não vou levantar, não! Fica na sua! E solta minha garganta…”), até que começou a descida da serra…

Quem já passou por ali, sabe o quão paradisíaca é aquela paisagem. Agora imaginem – apenas fechem os olhos e imaginem – oito garotos aloprados “surfando” serra abaixo, curva após curva, rolando pela carroceria às vezes, levantando-se em seguida, rindo sempre, vento nos rostos, frescor nas almas… Não tem como descrever. Simplesmente não tem como.

E, já na altura do mar, ainda no caminhão, aquele vento de maresia nos envolveu totalmente, já salgando nossos paladares sem sequer termos entrado na água… Foi ali que nos despedimos do grupelho, que ficou por Caraguá mesmo.

– E aí, vocês acabaram não dizendo pra onde vão…

– Trindade, cara.

– “Deus me Livre”!

– Porra, por quê? Ouvimos dizer que lá é bem legal…

– Não, não. Vocês não entenderam. Vocês não tem ideia do que estou falando, né? “Deus me Livre”?

– Carái! Dá pra ser claro?

Sem chance. Aquilo não era táxi e, com o pessoal que ia descer já no chão, o motorista do caminhão simplesmente arrancou e saiu, aliás, quase arrancando eu e o Vilaça de cima da carroceria também. O rapaz ainda gritou alguma coisa – que, lógico, não conseguimos entender – e saiu rindo falando sei lá o quê pro resto da turminha. Paciência.

O caminhão estava indo rumo a Paraty (carona melhor jamais teríamos conseguido) e tudo ia bem…

Bom. Quase. Aquelas nuvens lá no céu, outrora hospitaleiras em encobrir o sol, agora começavam a ficar cada vez mais densas e cada vez mais com cara de nuvens de chuva. Mas, naquela velocidade, certamente chegaríamos ao nosso destino antes que começasse a chover. O negócio era curtir aquela paisagem de mar, totalmente à nossa disposição durante quase todo o trajeto!

E, nessa toada, quando menos esperávamos, o motorista parou. Não vimos nenhuma placa. Nada. Mato, mato, mato e uma estrada de terra à direita.

– Chegamos!

Descemos do caminhão, já com as mochilas nas costas, meio que incrédulos…

– Aqui?

– É isso aí. Agora é só seguir nessa estradinha que já, já, vocês chegam lá.

– Tem certeza, cara?

– Tô te falando…

– Tãotáintão… Valeu, chefia! Boa viagem e vai com Deus!

– ‘Brigado! Boa sorte procês também!

Cumassim “boa sorte”? Olhamos um para o outro enquanto o caminhão seguia seu caminho, sumindo na estrada.

– É, cara, o negócio agora é andar. Porque aqui nessa estradinha eu du-vi-de-o-dó que a gente vá conseguir alguma carona nesse século…

O Vilaça nem se dignou a responder. Atravessamos a pista, olhamos para aquele começo de estrada de terra que seguia morro acima e demos o primeiro passo da nossa caminhada.

Que foi exatamente no mesmo instante em que a primeira gota de chuva caiu na minha testa.

( Continua. Morro acima e chuva adentro. )

 
 
# Perdeu o começo? Liga não. Tá aqui.

“Meu reino por um cavalo!”

O rei Ricardo III estava se preparando para a maior batalha de sua vida. Um exército liderado por Henrique, Conde de Richmond, marchava contra o seu. A disputa determinaria o novo monarca da Inglaterra.

Na manhã da batalha, Ricardo mandou um cavalariço para verificar se seu cavalo preferido estava pronto.

– Ferrem-no logo – disse ao ferreiro, – o rei quer seguir em sua montaria à frente dos soldados.

– Terás que esperar – respondeu o ferreiro, – há dias que estou ferrando todos os cavalos do exército real e agora preciso ir buscar mais ferraduras.

– Não posso esperar – gritou o cavalariço, impacientando-se, – os inimigos do rei estão avançando neste exato momento e precisamos ir ao seu encontro no campo. Faze o que puderes agora com o material de que dispões.

O ferreiro, então, voltou todos os esforços para aquela empreitada. A partir de uma barra de ferro, providenciou quatro ferraduras. Malhou-as o quanto pôde até dar-lhes formas adequadas. Começou a pregá-las nas patas do cavalo. Mas, depois de colocar as três primeiras, descobriu que faltavam-lhe alguns pregos para a quarta.

– Preciso de mais um ou dois pregos – disse ele, – e vai levar tempo para confeccioná-los no malho.

– Eu disse que não posso esperar – falou, impacientemente, o cavalariço, – já se ouvem as trombetas! Não podes usar o material que tens?

– Posso colocar a ferradura, mas não ficará tão firme quanto as outras.

– Ela cairá? – perguntou o cavalariço.

– Provavelmente não – retrucou o ferreiro, – mas não posso garantir.

– Bem, usa os pregos que tens – gritou o cavalariço, – e anda logo, senão o Rei Ricardo se zangará com nós dois!

Os exércitos se confrontaram e Ricardo participava ativamente, no coração da batalha. Tocava a montaria, cruzando o campo de um lado para outro, instigando os homens e combatendo os inimigos. “Avante! Avante!”, bradava ele, incitando os soldados contra as linhas de Henrique.

Entretanto, lá longe, na retaguarda do campo, avistou alguns de seus homens batendo em retirada. Se os outros os vissem, também iriam fugir da batalha. Então, Ricardo meteu as esporas na montaria e partiu a galope na direção da linha desfeita, conclamando os soldados de volta à luta. Mal cobrira metade da distância quando o cavalo perdeu uma das ferraduras. O animal perdeu o equilíbrio e caiu, e Ricardo foi jogado ao chão. Antes que o rei pudesse agarrar de novo as rédeas, o cavalo assustado levantou-se e saiu em disparada. Ricardo olhou em torno de si. Viu seus homens dando meia volta e fugindo, e os soldados de Henrique fechando o cerco ao redor. Brandiu a espada no ar e gritou:

– Um cavalo! Um cavalo! Meu reino por um cavalo!

Mas não havia nenhum por perto. Seu exército estava destroçado e os soldados ocupavam-se em salvar a própria pele. Logo depois, as tropas de Henrique dominavam Ricardo, encerrando a batalha…

E desde então o povo passou a cantarolar:

“Por causa de um prego, perdeu-se uma ferradura; por causa de uma ferradura, perdeu-se um cavalo; por causa de um cavalo, perdeu-se uma batalha; por causa de uma batalha, perdeu-se uma guerra; por causa de uma guerra, perdeu-se um reino… Por causa de um único prego, perdeu-se um reino inteiro!”

(Adaptado do original de James Baldwin.)