Foi amor ao primeiro escrito com português correto

Rebeca Bedone

Ela se rendeu aos aplicativos de paquera. Tímida e conservadora, nunca acreditou muito nessas tecnologias do amor. Mas acontece que a solidão torna-se uma insistente companheira para aqueles que não tomam alguma atitude, como sair de casa mais vezes ou até encarar sites de relacionamento. Encorajada pelas amigas que arrumaram seus “crushs” na internet, ela montou seu perfil. Escolheu algumas fotos e ficou pensando se colocaria informações pessoais. Melhor não, vai saber quem é que leria sobre a sua vida. No começo, ela tinha que decidir se apertava o xis ou o coraçãozinho: não ou sim. Com qual critério decidir se o cara era um paquera em potencial? A foto. Até ali, era só a aparência física que estava valendo? Ok. Ela resolveu jogar o joguinho de encontrar um “crush”: não; não; não; não; não; não; não. Tinha alguma coisa errada. Será que ela estava sendo exigente demais? Com certeza, sempre foi (deve ser por isso que anda sem sorte no amor). Mas essa maneira de escolher não parecia muito justa. E se os nãos anteriores fossem pessoas legais e interessantes? Ela só saberia se conversasse, certo? Então despiu-se mais uma vez de seus preconceitos e começou a espalhar coraçãozinhos: sim, sim, sim, sim, sim, sim! Mais uma barreira vencida. Ela estava se sentindo orgulhosa. Ficou esperando para ver o que aconteceria em seguida, quando chegou a primeira mensagem: “oi linda”. Hum. Curioso. A abordagem, que para muitas mulheres deve ser uma delícia, para ela pareceu invasiva. O cara nem tinha intimidade e já ia chamando-a de linda. Mas, ok, ela estava decidida a romper barreiras. Papo veio, papo foi e o dia correu com uma variação de cantadas digitais. Mas alguma coisa estava esquisita. Não era que os moços não parecessem bacanas, até pareciam. Uns mais atirados, outros, discretos; fazia parte do processo, como na vida real. Mas um detalhezinho a incomodava: quanto erro de português, meu Deus! Veja bem: ela não é nenhuma literata nem professora de Língua Portuguesa. Mas, quanto mais madura e independente é uma mulher, mais seletiva ela fica em seus relacionamentos. Se isso é bom? É e não é; cada experiência que o diga! E, em se tratando dela, escrever o básico de forma correta é imprescindível (fazer o quê?!). Como sentir tesão com um “moro aqui a cinco anos” e “concerteza você vai gostar”? Ela, com absoluta certeza, não gostou. E gostou menos ainda quando leu “pra mim fazer”, “fazem 3 dias” e “agente vamos”. Sobre os porquês, ela até deu um tempo na sua implicância. A língua portuguesa é difícil mesmo, não seria justo julgar alguém só por ele não saber por que os porquês são escritos de forma junta ou separada. Mas, porque chegou a próxima mensagem, ela quase surtou: “linda agente podia marca um rapi”. Será que ele estava convidando-a para dançar rap? Não. Era “happy hour”! As pessoas escrevem mensagens com um ritmo acelerado nos dias de hoje. Ela entendia que abreviaturas como vdd (verdade), blz (beleza), vc (você), ctz (certeza), n (não) e bj (beijo) fossem aceitas na era da escrita digital. Mas, mesmo assim, ela chegou a pensar que a profecia de José Saramago seria cumprida algum dia: “De degrau em degrau, vamos descendo até o grunhido”. Entretanto, o que a chateava era ver a “última flor do Lácio, inculta e bela” ser tão maltratada. O seu coração doía ao ler tanta coisa errada. Por que assaltaram a gramática e assassinaram a nossa lógica? Para ela, havia uma grande diferença entre licença poética e erro de português. Foi então que seu celular apitou: “Boa noite. Tudo bem com você?”. Os olhos dela brilharam. Como era bonito ler palavras que não estavam abreviadas. E a mensagem tinha até pontuação! Ela ficou interessada e respondeu. A conversa prosseguiu tão deliciosamente pelo aplicativo de paquera que, logo, eles passaram para o WhatsApp — e não “Zap”, como disse um outro candidato ao coração dela. E depois? Será que rolou o encontro ao vivo? Bom, isso é uma outra história (ou estória, para quem preferir).

As duas portas

Existem duas portas para entrar em casa: a da sala e a da cozinha.

A primeira, de madeira, imponente, envernizada, com seu pomposo trinco e um suave girar nos gonzos.

A segunda, de segunda. Literalmente. É de lata e vidro, com uma portinhola que lhe ocupa a maior parte e que serve para arejar o ambiente e para o gato passar. Seu trinco quando não emperra, não tranca e o ruído dela abrindo ou fechando lembra muito o daquelas velhas portas dos antigos filmes de terror.

Quem eu não conheço muito bem recebo com a formalidade da porta da frente. A pessoa limpará seus pés num bonito capacho, com a sempre presente inscrição de boas-vindas. Poderá pendurar seu casaco ou bolsa no gancho que fica logo ao lado da porta e se estiver chovendo ainda terá um porta guarda-chuvas por perto. Ao entrar enxergará o espaço organizado do sofá e sua mesinha de centro, com uma bela televisão ao fundo ladeada de estantes de livros, de CDs e de DVDs. Provavelmente se perderá por ali por alguns momentos avaliando os títulos presentes. Eu a convidarei para se sentar, já me acomodando logo em frente e provavelmente devo até mesmo cruzar as pernas, isso depois de já ter aberto as cortinas para dar lugar à luz e à brisa. Ao som de uma suave música ambiente, deverei oferecer café em jogo completo de xícaras e bandeja de metal. Perguntarei se açúcar ou adoçante.

Apesar do extremo acolhimento, ainda assim não estarei à vontade. Pensarei com cautela cada palavra que direi e jamais correrei o risco de falar mal ou mesmo bem de alguém.

As visitas ganham o melhor da residência e o pior do anfitrião.

Já quem eu amo entra pela porta da cozinha, no meio da bagunça das panelas, da mesa ainda posta, do artesanato da Dona Patroa e dos jornais espalhados. É o umbral secreto do afeto, simples e despojado, sem tapete, com os saborosos perfumes vindos do fogão, dos temperos e dos alimentos descongelando. Se estiver chovendo, praguejando levarei o guarda-chuva pingando, correndo através da cozinha, para depositá-lo no tanque do lado de fora. Não haverá cerimônia nenhuma. Casacos e bolsas serão largados na cadeira mais próxima. Se quiser café já sabe onde estará e, à vontade, se servirá. O mesmo com as cervejas na geladeira e ainda vai soltar um palavrão porque não é da marca preferida dele.

Os amigos ganham a verdadeira face do lar e a sinceridade do anfitrião.

Ou seja, existirão duas versões de mim: aquele que abre a porta da frente e aquele que abre a porta dos fundos.

Na frente estarei de roupa social ou no mínimo formal, já tendo pensado nos detalhes e na cerimônia necessária para receber a visita. O cumprimento será, com olhos nos olhos, um firme aperto de mão. A conversa será em meio tom, moderada, circunspecta e voltada a assuntos que habilmente estarão direcionados ao motivo pelo qual a visita veio em minha casa.

Já nos fundos estarei de calção, camiseta regata e chinelo. Com um sorriso ou uma gargalhada, xingarei o amigo que entra já dizendo que está sumido e será recebido com um abraço de quebrar os ossos e com calorosos tapas nas costas. Aqui a alma também muda. Falo gritado e gesticulando, com a passionalidade de um bom filho de mineiro. Não importa o motivo pelo qual está ali – mas ainda bem que veio! – qualquer assunto será assunto, não meço as confissões e as fofocas e tampouco arrumo ou calculo as frases. Não me preocupo em absoluto com a expectativa de agradar, já que meus amigos fazem parte do meu lar.

Se tiver vindo para um almoço, a visita sentar-se-á à mesa e, enquanto conversa com os demais presentes, poderá se servir dos alimentos que já estão nos refratários postos à mesa enquanto aguarda chegar a carne preparada na churrasqueira lá nos fundos, a qual estará numa brilhante bandeja de metal, já assada e cortada no ponto certo.

Já os amigos estarão comigo na churrasqueira, aos quais ainda pedirei para pilotar enquanto vou ali na esquina buscar mais cerveja ou refrigerantes. Sentar-se-ão nas muretas do quintal e comerão na mesa que previamente foi levada lá pra fora. Se servirão diretamente das panelas que ainda estão no fogão, isso quando não tiverem eles próprios que botar a mão na massa e preparar uma salada, um arroz, um vinagrete que seja. A carne virá pingando diretamente da tábua para o prato ou para o pão, conforme se queira. Contaremos piadas, falaremos mal da vida alheia, de nós mesmos, comeremos, beberemos e brindaremos à vida!

A porta que mira a rua é a da sobriedade, da cerimônia, da conversa controlada e sentimentos ocultos.

A porta que beira o fogão e a geladeira é a da intimidade, dos risos e implicâncias, das gargalhadas e do choro apressado com um consolo sentido e sincero.

Só abrimos nosso coração e nos entregamos de alma para aqueles em que verdadeiramente confiamos…

(Copiado, colado, cortado, inserido, alterado e reformado de uma crônica do Fabrício Carpinejar.)