Jokers

Não, até a data de hoje ainda não fui assistir o novo filme do Coringa – ou melhor, Joker.

Não porque não queira, mas é que eu não tenho essa ansiedade que permeia as novas gerações (X? Y? Z? Sei lá em qual letra do alfabeto estamos atualmente…) para correr a assistir a um filme assim que é lançado, às vezes até mesmo brigando a tapa por uma vaga na pré-estreia.

Sou da geração passada – ou mesmo anterior – em que nem todos podiam ir ao cinema para, naquela tela gigantesca, assistir o filme que estivesse em voga à época. Muitas vezes apenas um da turma é que conseguia assistir e mais tarde, tal qual reunião da tribo sentada em volta da fogueira, juntava-se com os demais para contar o filme nos seus mínimos detalhes. Spoilers não eram problemas, pois o que interessava era saber como era o filme em seu todo. E se mais tarde os demais tivessem oportunidade de assisti-lo, o simples conhecer prévio da estória não minimizava o impacto da imagem na tela grande.

Telas essas que deram lugar às minimalistas salas de apresentação em shoppings, de modo que cada vez menos projeções as ocupavam, tendo primeiro se tornado palcos de eventos e, a seguir, igrejas evangélicas, na sequência estacionamentos e, por fim, esquecimento. Paciência. É apenas a vida sendo a vida.

Mas divago!

Falávamos do Coringa.

Esse personagem foi criado, na época sem muitas pretensões, para ser meramente mais um antagonista do Homem-Morcego, tendo aparecido pela primeira vez já na revista Batman nº 1, em abril de 1940. Criado conjuntamente por Jerry Robinson, Bill Finger e Bob Kane, reza a lenda que Jerry surgiu para os demais com uma carta de baralho (que viria a servir de cartão de visita para o personagem) e lhes disse como o desenho nela estampado parecia com o ator Conrad Veidt, num filme de 1928, O Homem que Ri (em que o rosto do sujeito era permanentemente operado para que ele sempre tivesse essa espécie de sorriso perpétuo). Originalmente o Coringa era retratado apenas como “mais” um gênio do crime, mas com um senso de humor sádico e doentio. No final da década de cinquenta, por conta da “Caça às Bruxas” instituída pelo Comic Code, tornou-se um ladrão pateta e brincalhão, somente regressando às suas raízes lá pela década de setenta. Mas a sua personalidade psicopata de agente do caos, onde imperam a falta de empatia e ausência de culpa ou remorso pelos seus próprios atos, somente veio a se consolidar em fins da década de oitenta…

Meu primeiro contato com esse personagem foi assistindo a famosa série do “Batman Barrigudinho” (interpretado por Adam West) lançada em 1966, quando era interpretado por César Romero. Ali tudo era kitsch, cômico, histriônico e, diferente das séries exibidas hoje em dia (que tendem mais para um aprofundamento na psiquê dos personagens, exibindo o lado negro que cada vilão ou herói contém), tudo era comédia, tudo era pastelão. Até a própria forma do ator encarnar o personagem, pois ele tinha muito em conta seu “bigodinho sedutor” e impôs como condição não raspá-lo – de modo que a penugem era sempre visível sob a maquiagem branca… Essa foi uma das séries que me acompanhou nos idos dos anos setenta, quando nas manhãs e tardes de sábado me era possível assisti-la no boa e velha TV de tubo da Telefunken!

E eis que veio o final de minha infância, o início da adolescência e meio que deixei de lado todas essas séries e quadrinhos de então para preocupar-me com outras coisas, digamos, “mais interessantes”, invariavelmente relacionadas à fina arte de me encantar com as meninas e moçoilas que faziam parte do meu limitado círculo social…

Só voltei a reencontrar o Coringa nos idos de 1986, quando Frank Miller revolucionou tudo que sabíamos de quadrinhos e lançou a série “Batman: The Dark Knight Returns”. Ali tínhamos a estória de um Batman já aposentado, atormentado pela morte do segundo Robin (cujos detalhes somente viriam à tona mais tarde) e que nesse futuro distópico voltou a combater o crime numa Gotham City mais sombria e violenta do que parecia ser possível. Nela o Coringa encontrava-se internado, há anos em estado catatônico, mas que com a notícia da volta do morcego, também voltou à sua própria distorcida, fria e violenta realidade. Somente sua morte, através das mãos nuas de Batman, foi capaz de deter sua fúria assassina. Talvez essa tenha sido a mais malévola e assustadora encarnação do personagem até então.

A seguir, meio que para preencher as lacunas deixadas para trás, tivemos a HQ “A Death in the Family”, escrita por Jim Starlin, com arte de Jim Amparo e arte final de Mike DeCarlo. Mais uma vez temos um Coringa frio, violento e calculista, enquanto que Batman havia substituído o primeiro Robin (Dick Grayson) por um colérico e indisciplinado Jason Todd. Se Frank Miller já havia revolucionado os quadrinhos nos apresentando uma sombria e brutal Gotham City do futuro, neste caso estávamos tratando ainda do presente e definitivamente não era costume dos roteiristas “exagerar” na dose, nem tampouco matar seus personagens. Mas foi exatamente isso que aconteceu. Numa estória em que o Coringa se apresenta como um estrategista do caos, mas ainda assim um doido varrido e psicótico, numa cena sufocante ele praticamente dá cabo do Robin a golpes de um pé de cabra. Não contente, após quase matá-lo espancado, prende-o, ainda vivo, cercado de explosivos que somente o matam porque Robin ainda tentou proteger a própria mãe que o traiu.

E eis que aquele final de anos oitenta e começo dos noventa foi profícuo em revoluções nos roteiros dos quadrinhos, ainda mais com um personagem tão amplo quanto é o Coringa. Desta vez tivemos que Alan Moore escreveu e Brian Bolland desenhou “Batman: The Killing Joke”. Por mais indícios que houvessem sido dados desde a criação do personagem acerca de como ele veio a se tornar o Coringa, somente aqui realmente nos foi apresentada a mais verossímil versão dessa estória, que mistura uma busca de Batman para tentar acabar com a espiral de violência que permeava o contato de ambos com flashbacks de um passado em que um comediante mal sucedido é conduzido a uma vida de crimes e que encontra seu ápice quando ele definitivamente perde tudo aquilo que lhe serviria de razão para viver – em especial a própria sanidade. É de arrepiar.

Voltando aos cinemas, ainda em 1989, após mais de vinte anos longe das telas, o Coringa iria reaparecer no primeiro filme (quase) sombrio de Batman, dirigido por Tim Burton e teoricamente estrelado por Michael Keaton no papel principal. Isso porque o vilão que literalmente rouba todas as cenas em que aparece é ninguém menos que Jack Nicholson, numa excelente interpretação que por si só já demandaria em mudar o próprio nome do filme… É contada a estória de Jack Napier, um gangster psicopata que foi o responsável pela morte dos pais de Bruce Wayne. Essa versão se assemelha em diversos pontos com a HQ “A Piada Mortal” (The Killing Joke), principalmente porque o Coringa resultante, desfigurado e insano, é nada mais nada menos que um agente do caos, buscando não somente lucrar com seus crimes, mas sobretudo a disseminar a desordem numa Gotham City extremamente gótica, bem no estilo de Tim Burton. E, melhor que tudo, é nesse filme que temos a personagem Vicky Vale, interpretada pela minha eterna musa Kim Basinger… 😀

Depois dessa magistral interpretação, somente em 2008 (ou seja, novamente quase vinte anos depois da anterior) o personagem Coringa seria retomado no filme The Dark Knight, sob direção de Christopher Nolan, com Christian Bale no papel principal e Heath Ledger como o palhaço psicopata. Aqui já não há mais o interesse em recontar a origem do personagem, antes o contrário: no decorrer do filme seu passado é envolto em mistério e a cada vez que ele decide contá-lo o faz com uma versão diferente – o que mais uma vez nos leva à Piada Mortal, quando o Coringa afirma que “já que ele precisa ter um passado, ao menos que seja de múltipla escolha”… Como descrito pelo próprio diretor, a atuação de Ledger nos brinda com “um palhaço psicopata, assassino em série, esquizofrênico, rude, cruel, sarcástico e com zero de empatia”. O ator foi buscar sua inspiração não só nas antigas HQs que exploravam o tom anárquico e insano do personagem, mas também em outros filmes e personagens que também beiravam a insanidade, tais como em Laranja Mecânica e no cantor Sid Vicious. Como todos sabem, Ledger faleceu logo após a conclusão das filmagens e sua atuação lhe rendeu um Oscar póstumo. Merecido, diga-se de passagem.

Em 2016 seria a vez de Jared Leto interpretar o Coringa no filme Suicide Squad, dirigido por David Ayer. O ator foi buscar a inspiração para compor o personagem na aparência dos chefes de cartéis mexicanos e aqui não temos um palhaço psicopata, mas sim um sujeito arrogante e ainda assim sociável, uma espécie de homem de negócios bem sucedido e inteligente que vive um relacionamento incrivelmente disfuncional com a personagem Arlequina (esta sim, doidinha de pedra, como deveria ser). Ele se assemelha mais a um cafetão colombiano que a um vilão merecedor de atenção. Na boa? Essa versão do Coringa tem mais é que ser deletada de nossa memória

E finalmente chegamos no motivo que me impeliu a (re)construir essa saga: o filme Joker, dirigido por Todd Phillips, atualmente em cartaz nos cinemas e cujo personagem do título é interpretado por Joaquim Phoenix. Como já disse, ainda não assisti a película, mas já li um tanto quanto e ainda recebi os costumeiros spoilers de meu aficionado amigo barbeiro de plantão… Para resumir trata-se da estória de Arthur Fleck, um cara que, além de sofrer de um distúrbio neurológico que o faz gargalhar em momentos inapropriados, já é um sujeito muito ferrado na vida e que paulatinamente no decorrer do filme vai sofrendo golpes e mais golpes, cada vez mais duros, até que, por fim, sua sanidade finalmente se dilacera de um modo irrecuperável. Apesar de o roteiro básico lembrar bastante o da Piada Mortal, esse filme é muito – mas MUITO – mais denso do que qualquer outra estória que já tenha sido escrita para o Coringa, quer seja nos quadrinhos ou no cinema.

É um filme chocante. Ou seja, não é um “filme de herói”. E nem mesmo de “vilão”. Nos seus pouco mais de 120 minutos nos é contada uma estória que aparentemente se passa em fins da década de setenta e início dos anos oitenta – mas cujo tecido social que o permeia poderia facilmente ser comparado ao dos dias atuais – em que a trágica figura anônima que ainda irá se tornar o Coringa vai sofrendo os reveses de uma sociedade hipócrita, onde a luta de classes surge como pano de fundo para a trama.

E essa luta, com o proletariado à frente das ações, comete atos de vandalismos e tem confrontos com a polícia que nos trazem à memória cenas que vimos aqui mesmo no Brasil, em 2013, protagonizadas pelos chamados “black blocs”. Diferente de outros filmes baseados em quadrinhos, em que vigora o maniqueísmo clássico entre o bem e o mal, a estória deste filme promove uma violenta revolução social.

E a despeito da crise econômica que afeta a sociedade daquela Gotham, o filme tem um viés muito mais pertencente aos tempos atuais do que à época em que se desenrola a trama: a falta de empatia. Uma sociedade em que ninguém se importa com nada e ninguém se importa com ninguém. Como muito bem dito numa excelente resenha de Irapuan Peixoto, tudo isso se dá por conta de alguns motivos básicos: “A globalização desenfreada, a avidez do capital que destrói postos de trabalho tradicional e tenta criar a ilusão de que cada um é um empreendedor dono de si, capaz de vencer, somente à espera de seu Coach. Não é assim que funciona. A pobreza existe por causa das condições sociais de sua perpetuação. Por causa de um sistema de manutenção da desigualdade que garante que pobres continuem pobres e ricos continuem ricos. E adivinhem quem está no comando do processo? / O Coach te diz que se você se esforçar o bastante enriquecerá. Empreenderá. Isso é uma ilusão. Se o trabalho gerasse riqueza, ninguém seria mais rico do que o escravo. Não é trabalho que gera riqueza, mas a apropriação dos meios de produção. A capacidade de multiplicar uma riqueza prévia.”

Também é dele a seguinte conclusão: “O cinema e o entretenimento dos últimos anos vêm produzido obras sensacionais, mas a um custo: a domesticação dos sentimentos por meio de situações brandas. Notoriamente os longas do Marvel Studios acostumaram seu público de que o perigo em cena nunca é alto demais, nunca é sério demais. Uma sequência tensa é logo acompanhada por uma piadinha – quase sempre infame – que “quebra o gelo”, faz o espectador relaxar e quase esquecer do risco que a trama sugere. / A domesticação dos sentimentos tem um preço: a domesticação dos sentimentos. O público se acostuma.”

Cabe ainda lembrar que são várias as referências tanto para a interpretação quanto para a direção e mesmo a própria estória do filme, cabendo citar, dentre outros, Taxi Driver, de Martin Scorcese, A Piada MortalV de Vingaça (a HQ), ambas de Alan Moore, Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick e por aí vai.

Temos assim um Coringa que parece trazer um pouco de todos seus antecessores (ou não), porém com o agravante de nos esfregar na cara que uma miserável existência inteira sob pressão de uma sociedade injusta e apática torna-se um terreno fértil para o lento surgimento de um sociopata que inevitavelmente torna-se um psicopata pronto para distribuir o caos da forma mais brutal e imprevisível possível.

E como última referência ao filme, segundo tudo que ouvi, basta dizer que o ator Joaquim Phoenix parece estar magistral em sua interpretação, verdadeiramente pronto para um Oscar. Aguardemos.

Enfim, este não é um típico filme que transporta as estórias das HQs para as telas da forma com a qual nos acostumamos nos últimos tempos. É um filme tenso, violento e cheio de significados. Você não vai sair mais leve do cinema, antes o contrário: sairá pensativo e com o cérebro atormentado acerca de quão próximo da realidade a ficção pode estar.

Pronto.

Contei tudo e não contei nada.

Agora só me falta assistir o filme…

 

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