Trindade – III

– E aí, moçada?

– E aí?

A traseira do caminhão tinha apenas uma roda sobressalente deitada num canto, algumas lonas dobradas e cordas do outro, algumas vassouras, tudo mais ou menos perto da cabine do motorista, e sobre esse monturo de coisas, meia dúzia de gente.

Rapazes iguais à nós, com suas mochilas e sacolas, também na estrada também indo pra algum canto, também durangos. Começamos a trocar uma ideia – eles já saíram junto com o caminhão, também com destino ao litoral, o motorista era vizinho deles e topou levar aquela turminha pra praia.

– Legal! Vão pra onde?

– Ah, Caraguá mesmo. Lá na Martim de Sá.

Naquela época as praias do Centro eram muito feias e largadas, de modo que TODO MUNDO ia pra Martim de Sá. Pensando bem, as praias do Centro não são mais assim, e todo mundo CONTINUA indo pra Martim de Sá… Vai saber…

– E vocês?

– Estamos indo pra Trin…

– PULIÇA!!! PRO CHÃO!!!

Nos distraímos com a conversa e acabamos ficando desatentos…

E não, não é o que vocês estão pensando.

Não fomos cercados, alvejados ou vítimas de algum comando.

Simplesmente esquecemos do Posto de Guarda. Na realidade são dois (ou, na época, eram apenas esses dois): um logo no começo da Tamoios, saindo da zona urbana de São José, e outro bem no alto da serra. Vocês devem se lembrar que hoje em dia é proibido viajar (ou mesmo ser transportado) na carroceria de um caminhão aberto, certo? Então. Naquela época também era. E iria ser encrenca da grossa se o caminhão fosse parado por isso – e o que se viu foi um tal da rapaziada se atirar de peito no chão (a carroceria do caminhão era de madeira, com as laterais baixas e vazadas) e tentar se esconder no meio das lonas e cordas e outros quetais.

Dei uma olhada com o rabo dos olhos e vi os guardas lá dentro de sua cabine/posto/guarita/sei-lá-o-quê, olhando com desinteresse para o trânsito. Quase deu vontade de levantar e dar um tchauzinho só pra ver o que rolava – mas algo me disse que eu seria extremamente estúpido se fizesse isso. Talvez tenha sido apenas bom senso. Talvez tenha sido o Vilaça segurando minha garganta enquanto eu esperneava. Enfim, acho que nunca terei certeza…

Passado o “perigo”, logo após a última longa curva depois do Posto de Guarda, levantamo-nos descontraídos enquanto que o motorista passava um sabão na gente, pra que a gente prestasse atenção e, na próxima, ficasse esperto ANTES de chegar na fiscalização. Bem, acho que foi isso que ele disse, pois com o barulho do motor, o sacolejar da carroceria, um monte de adolescentes conversando e rindo, o vento nos ouvidos e o fato de ele ser um tanto quanto fanho – nada disso ajudou para dar uma melhor compreensão de suas palavras. Mas o recado foi entendido.

Aliás, por falar em vento…

Taí uma coisa que sempre gostei: vento. Quer me ver num mau humor desgraçado? Me encontre num dia quente, mormacento e de ar parado. E me aguente. Agora, quer me ver sorrir sozinho? Me dê um dia com vento. Sou daqueles que, andando na rua, louco entre o sãos, abre os braços para receber melhor cada vento, cada brisa, cada sopro que passa por mim.

Desde sempre gosto disso. Desde a mais tenra idade. Quando meu pai tinha um Jipe e íamos para a roça, o vento era presente em todos os cantos possíveis e imagináveis do veículo; mais tarde, com uma Variant (impecável até os dias de hoje), eu sempre escolhia sentar no banco atrás dele, pois ele preferia andar com o vidro aberto, se refrescando com o vento; foi no vento que, em casa, decolei de meu velocípede em alta velocidade e me esborrachei no chão, perdendo os sentidos; foi correndo contra o vento que perdi a noção de direção e, literalmente, bati de cara num muro de chapisco grosso (o que rendeu minha primeira grande cicatriz); foi numa noite de ventania, no escuro, brincando de pega-pega que, de novo literalmente, dei de cara com um varal de arame farpado (o que rendeu minha segunda grande cicatriz); o carrinho de rolimã me ajudava a desbravar o vento tanto quanto, anos depois, eu o faria com minha bicicleta…

E ali, naquele momento, na estrada, num dia que começava a ficar mais fresco graças às nuvens que resolveram tapar o sol, de pé em cima da carroceria de um caminhão, vento é o que não faltava!

Seguimos nosso rumo proseando um bocado, lembramo-nos de tomar todo o cuidado ao passar no segundo Posto de Guarda (“Pô, Vilaça! Não vou levantar, não! Fica na sua! E solta minha garganta…”), até que começou a descida da serra…

Quem já passou por ali, sabe o quão paradisíaca é aquela paisagem. Agora imaginem – apenas fechem os olhos e imaginem – oito garotos aloprados “surfando” serra abaixo, curva após curva, rolando pela carroceria às vezes, levantando-se em seguida, rindo sempre, vento nos rostos, frescor nas almas… Não tem como descrever. Simplesmente não tem como.

E, já na altura do mar, ainda no caminhão, aquele vento de maresia nos envolveu totalmente, já salgando nossos paladares sem sequer termos entrado na água… Foi ali que nos despedimos do grupelho, que ficou por Caraguá mesmo.

– E aí, vocês acabaram não dizendo pra onde vão…

– Trindade, cara.

– “Deus me Livre”!

– Porra, por quê? Ouvimos dizer que lá é bem legal…

– Não, não. Vocês não entenderam. Vocês não tem ideia do que estou falando, né? “Deus me Livre”?

– Carái! Dá pra ser claro?

Sem chance. Aquilo não era táxi e, com o pessoal que ia descer já no chão, o motorista do caminhão simplesmente arrancou e saiu, aliás, quase arrancando eu e o Vilaça de cima da carroceria também. O rapaz ainda gritou alguma coisa – que, lógico, não conseguimos entender – e saiu rindo falando sei lá o quê pro resto da turminha. Paciência.

O caminhão estava indo rumo a Paraty (carona melhor jamais teríamos conseguido) e tudo ia bem…

Bom. Quase. Aquelas nuvens lá no céu, outrora hospitaleiras em encobrir o sol, agora começavam a ficar cada vez mais densas e cada vez mais com cara de nuvens de chuva. Mas, naquela velocidade, certamente chegaríamos ao nosso destino antes que começasse a chover. O negócio era curtir aquela paisagem de mar, totalmente à nossa disposição durante quase todo o trajeto!

E, nessa toada, quando menos esperávamos, o motorista parou. Não vimos nenhuma placa. Nada. Mato, mato, mato e uma estrada de terra à direita.

– Chegamos!

Descemos do caminhão, já com as mochilas nas costas, meio que incrédulos…

– Aqui?

– É isso aí. Agora é só seguir nessa estradinha que já, já, vocês chegam lá.

– Tem certeza, cara?

– Tô te falando…

– Tãotáintão… Valeu, chefia! Boa viagem e vai com Deus!

– ‘Brigado! Boa sorte procês também!

Cumassim “boa sorte”? Olhamos um para o outro enquanto o caminhão seguia seu caminho, sumindo na estrada.

– É, cara, o negócio agora é andar. Porque aqui nessa estradinha eu du-vi-de-o-dó que a gente vá conseguir alguma carona nesse século…

O Vilaça nem se dignou a responder. Atravessamos a pista, olhamos para aquele começo de estrada de terra que seguia morro acima e demos o primeiro passo da nossa caminhada.

Que foi exatamente no mesmo instante em que a primeira gota de chuva caiu na minha testa.

( Continua. Morro acima e chuva adentro. )

 
 
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