Despertar

Abri os olhos.

Meu corpo reclamou, ligeiramente coberto de suor.

Afastei as cobertas e o primeiro pensamento que me veio: ela se foi.

Finalmente aquela maldita dor de cabeça que me consumia até o último dos neurônios se foi.

Respirei fundo e fui ver como estava o dia lá fora. Como o mundo se comportou ante a minha forçosa ausência. Bem, como era de se esperar, o mundo continuou sendo mundo. Um ligeiro toque de melancolia maculou minha alma. Serei tão desnecessário assim? A casa em silêncio – afinal as crianças estavam na escola – fazia ecoar meus próprios passos.

Com o corpo ainda dolorido resolvi que era hora de dar uma olhada também lá fora, ver um pouco de céu, de ar, de gente.

No caminho resgato um cigarro e visito a garrafa térmica. Um último gole ainda me aguardava. Precisava de ambos. Afinal já se passaram dois dias inteiros sem café e ao menos mais de um sem cigarro! Muito tempo sem nenhum veneno no corpo.

No meu cantinho de sempre, da amurada do navio que a casa se transformou, vejo o mar de asfalto logo abaixo, onde apressadamente navegam carros e motos e gentes em busca sabe-se lá de o quê, sob um céu sem sol, acinzentado como tudo o mais.

Nesse momento a capela logo em frente põe-se a tocar Ave Maria no seu sofisticado sistema de som, com um único megafone dependurado à porta. Era a costumeira versão de Charles Gounod:

– Ave Maria, Gratia plena

Como que atraído por aquele triste lamento, meu vizinho também sai, mas à rua. Joga algo na lixeira, volta, recosta-se no portão.

– Dominus tecum, Benedicta tu

Volto toda minha atenção para ele que, agora, acocorado, perde-se em algum íntimo devaneio, olhando sem ver a densa mata que se ergue frente às nossas casas.

– In mulieribus, Et benedictus

Não posso deixar de pensar que, de algum modo, assim como eu, com esse ambiente, com essa música, também nele se fez vibrar alguma dissonante nota de tristeza dentro d’alma.

– Fructus Ventris tui, Jesus

E, não sei o porquê, talvez me atentando ao silêncio reinante dentro de minha própria casa, lembrei-me de seu filho, pouco mais que um adolescente e que faleceu há pouco tempo. Pouco mais de um ano, ou anos, creio eu.

– Sancta Maria, Sancta Maria, Maria

E me veio um aperto no coração, um aperto do tipo que se sente quando o mundo se distorce, retorce e contorce ao seu redor. Quando algo está extremamente errado e não necessariamente conseguimos entender o que é. Sequer sei se é sobre isso que ele devaneia, mas ao vê-lo, ali, aquele pai que sobreviveu ao filho, de um certo modo sua dor se torna minha dor. Seu lamento se torna meu lamento.

– Ora pro nobis, Nobis peccatoribus

Ainda me lembro do dia em que o garoto faleceu. Alguma espécie de leucemia descoberta tarde demais, se não me engano. Lembro-me claramente dos gritos desesperados de sua irmã naquela madrugada em que se foi, quando recebeu a notícia de sua partida. Gritos somente suplantados pelos da própria mãe. Mas dele, do pai, não me lembro sequer de um som. Talvez não estivesse lá. Mas talvez estivesse sofrendo, como agora, em silêncio.

– Nunc et in hora mortis, Hora mortis nostrae, Amen

E, cá no meu canto, comungo com ele uma silenciosa oração por aquele menino que tão cedo se foi. Apenas uma solitária lágrima rola por minha face, ainda que meus olhos estejam completamente marejados. E, talvez egoisticamente até, sinto uma enorme saudade de minhas crianças e da algazarra que normalmente preenche este lar e este coração vazios.

– Amen.