Conto urbano

Esse “causo” aconteceu mesmo.

Isso se deu aproximadamente em agosto de 2000. Curiosamente encontrei-o hoje, exatos dez anos depois, nas catacumbas de meu computador, enquanto procurava outros textos antigos…

Será que ainda reflete nossa realidade?

Será que o mundo lá fora mudou?

Ou não?

Concluam por si mesmos…

Após a mais prosaica das atividades – compras de supermercado – estava eu dirigindo por uma larga e iluminada avenida rumo a minha casa, ouvindo uma música antiga no rádio que me levou a um ligeiro devaneio acerca da solidão do ser humano, quando um determinado movimento me chamou a atenção. Duas motos, uma mais potente e outra menor, estavam paradas, à minha direita. O condutor da de trás – uma “lambretinha” – deu um empurrão no rapaz que estava parado a seu lado, com um capacete na mão, e saíram em disparada.

Num desses arroubos em que a gente age primeiro e pensa depois, virei na primeira esquina, voltei, e parei numa rua próxima. Lá vinha o rapaz que havia caído, pálido, olhar triste, e capacete na mão.

– Está tudo bem?

– Tudo bem, fora a moto só levaram dinheiro e documentos.

– Eu vi mesmo que havia algo errado quando aquele rapaz te deu um empurrão e te deixou para trás, segurando o capacete. Que moto era?

– Uma Bis. O cara tinha uma arma, não teve jeito. Foram por ali…

– Opa, espere um pouco, eu não sou herói não. Só vim ver o que é que estava acontecendo. Vamos deixar esse trabalho a quem compete.

Ato contínuo, com o celular na mão, disquei 190. Chama, chama – será que liguei o número certo? – chama, chama – polícia é 190, mesmo não é? – chama, chama – acho que é feriado hoje e não estou sabendo… – chama, chama… desisto.

– Pois é rapaz, parece que está meio difícil. Você mora longe? Não? Vamos, eu te levo.

Deixei o jovem perto de sua casa, não sem antes dar uma verificada se havia alguma viatura próxima a um evento que estava tendo pelo caminho, com trânsito impedido, e tudo mais. Humpf. Somente o pessoal do trânsito (vulgos “marronzinhos”). Estes não resolveriam nada, a não ser que os assaltantes estivessem estacionados em local proibido.

Enquanto descarregava as compras, lamentei pela má sorte do rapaz. Provavelmente os assaltantes, em sua moto mais potente, ficaram lado a lado e apontaram a arma. Como diz o ditado, “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. Comeu. Depois disso, pelo sim, pelo não, chequei novamente os cadeados do portão, e se as portas da cozinha e da sala estavam bem fechadas.

Essa pequena história – que aconteceu mesmo, na última quinta-feira, não é apenas mais um conto do Pantaleão – corresponde a uma pequena faceta de nossa sociedade atual, faceta essa que podemos decompor nas mais variadas conclusões.

Uma delas diz respeito à inevitável conclusão de que, cada vez mais, estamos ficando aprisionados, levantando muros e reforçando grades, atrás das quais ficamos trancafiados, enquanto que as “feras” de nossa selva dominam as ruas, soltas, imbatíveis, impuníveis…

Já noutro aspecto desse prisma distorcido temos a patética constatação de que, quando ousamos colocar os pés fora de nossos “bunkers”, estamos entregues à própria sorte, sem poder contar com policiamento que nos proteja ou, ainda, que nos socorra mesmo após passado o perigo.

Por fim, mas não por último, quando esse jovem desconhecido, juntamente com seu capacete – que é o que lhe sobrou – fizer seu boletim de ocorrência (se é que já não saiu com parentes e amigos para uma perigosa caçada), passará a fazer parte das estatísticas policiais, políticas, administrativas e governamentais, onde vivem constatando o aumento da criminalidade, do índice de furtos, roubos e assaltos, ou outra coisa óbvia qualquer, e, certamente, concluirão que é necessário investir mais em viaturas (que não chegam), em aparelhos (que não funcionam), em armamento (retrógrado), ou coisa que o valha.

Portanto, parabéns rapaz, onde quer que você esteja!

A partir de agora, de mero jovem desconhecido, você conquistou seus 15 minutos de fama – provavelmente menos – e fez jus ao direito de integrar as grossas fileiras das estatísticas brasileiras.

E de capacete na mão.

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