A censura nos quadrinhos

Sidney Gusman é jornalista especializado em quadrinhos e editor-chefe do site Universo HQ (http://www.universohq.com).

Artigo publicado no exemplar nº 24 da Revista Sandman, pela editora Globo em 1991.

Rotular histórias em quadrinhos como coisa de criança nos dias de hoje não afeta em nada o orgulho do leitor, pois ele sabe que isso pertence ao passado. No entanto, a falsa imagem negativa das HQs quase custou sua extinção nas décadas de 40 e 50 nos EUA, em pleno “reinado” de Harry Truman. A derrota dos nacionalistas na China e o início de testes nucleares na URSS propiciou o nascimento de uma psicose anticomunista que gerou consequências desastrosas, como a abertura de processos contra intelectuais esquerdistas (Alger Hiss) e estrangeiros suspeitos de espionagem (o casal Julius e Ethel Rosenberg).

Neste caos idealista, o senador Joseph McCarthy criou, em 23 de setembro de 1950, o Comitê contra as Atividades Antiamericanas: o período tristemente conhecido como “macartismo” (1950/1958). Essa caça às bruxas ocasionou denúncias e perseguições a todos aqueles considerados suspeitos de alguma coisa. Exatamente nessa era, surgiu o monstro que, até hoje, assola a liberdade de criação nos quadrinhos: o COMICS CODE (o Código de Ética).

A Era negra dos Quadrinhos

No início dos anos 50, as revistas em quadrinhos de horror, crime ou qualquer outro tipo, sofriam ataques de educadores, imprensa, grupos de pais, legisladores, igreja, polícia e psiquiatras. Segundo eles, os comics glorificavam violência, crime e sexo. O número de delinquência juvenil estava aumentando e suspeitavam de que as HQs eram, de alguma forma, responsáveis pelo rápido declínio moral da juventude.

O pós-guerra nos EUA deu início a um fanatismo em massa encoberto pelo ultranacionalismo ianque. Entre os muitos inimigos das revistas estava o Dr. Fredric Wertham, um psiquiatra de jovens problemáticos. Seus vários artigos publicados a partir de 1948 começavam a chamar atenção por mostrarem facetas das outrora inofensivas histórias em quadrinhos que ninguém tinha a malícia de enxergar.

Naquela épóca o oportunista Dr. Wertham soube utilizar muito bem a má fama das HQs para aumentar a aversão do público por ela e tornou-se o principal carrasco da oitava arte. Ele fez várias pressões, na tentativa de convencer o governo a assumir uma postura mais rígida contra o que chamava de “mutilação psicológica das crianças”.

Então, em 1954, Wertham desferiu o golpe de misericórida com a publicação do livro “Seduction of the Innocent” (Sedução do Inocente). Escrita de maneira bem simples e popular, a obra trazia, principalmente, anedotas de humor duvidoso mescladas com casos de jovens que, supostamente, haviam sido “afetados” pelas histórias em quadrinhos. De acordo com o autor, tais histórias induziam as crianças a cometerem roubo, estupro, uso de drogas ou, até mesmo, a mudar sues hábitos sexuais. Ainda hoje podemos notar reflexos das represálias moralistas através de Batman & Robin, cuja suspeita de homossexualismo era, e ainda é, flagrante segundo as más línguas. A Mulher Maravilha, por sua vez, foi apontada como um péssimo exemplo para as garotas, pois não passava de uma estandarte do lesbianismo.

Subcomitês do Congresso foram criados para estudar com mais profundidade a existência do perigo iminente das revistas em quadrinhos. Era o começo da ERA NEGRA DOS QUADRINHOS.

A Vítima

O maior expoente da história do horror nos quadrinhos foi a EC COMICS (antiga EDUCATIONAL COMICS e, então, ENTERTAINMENT COMICS), de William Gaines, e, consequentemente, o grande alvo dos moralistas americanos.

Seu famoso “triunvirato do horror”, que estreou em maio de 1950, era composto por “The Crypt of Terror” (mais tarde rebatizada de “Tales from the Crypt”), “The Vault of Horror” e “The Haunt of Fear”. Em parceria com Al Feldstein, Gaines marcou época com histórias de terror realizadas por grandes artistas como Johnny Craig, Jack Davis, Graham Ingels, George Evans e Jack Kamen. Esse sucesso, porém, não gerou simpatia alguma no Comitê encarregado de julgar as revistas da EC.

Chamado para testemunhar em defesa de sua editora, Gaines não teve argumentos positivos contra a imposição da decência deturpada de seus inquisidores. Uma vez mais, a imprensa sensacionalista cumpriu seu papel e fez o desfavor de manipular a história e conduzir a opinião pública. Afinal, manchetes escandalosas chamavam muito mais atenção do que a verdade.

Para certo espanto dos que eram contra as histórias em quadrinhos, os Comitês abdicaram de sua atuação como tribunal alegando não ser função do Governo moralizar as revistas, pois isso já deveria estar embutido nas próprias editoras. De uma forma sutil, a censura foi sendo imposta como um requisito básico nas publicações do gênero. Nenhum cancelamento precisou ser formalizado. A desgraça já estava feita!

O Comics Code

Cego pelo macartismo, o público começou uma espécie de guerra santa contra as demoníacas HQs. Não bastava queimar apenas as revistas de terror… Praticamente todas as publicações passaram a ser perseguidas. As vendas despencaram. Era a crise editorial provocada por fanáticos no início da época denominada happy days (os tão famosos “dias felizes” ou “anos dourados” que antecederam o fim do sonho americano com a Guerra do Vietnã).

Em pânico, as editoras resolveram se unir e formaram a CMAA – “Comic Magazine Association of America” (Associação das Revistas em Quadrinhos da América), através da qual pretendiam estabelecer um “padrão de moral” para assegurar aos leitores uma revista de “qualidade”. A forma escolhida para diferenciar a “boa” da “má” publicação foi o uso de um selo discreto no canto (esquerdo ou direito) superior das revistas: o Comics Code.

A demagogia era tamanha, que a CMAA enviou comunicados a jornais, associações comunitárias e outros órgãos envolvidos na moralização das HQs informando que todos os títulos com o selinho estampado em suas capas estariam livres de qualquer indução negativa às crianças. Resumindo, o Comics Code significava o seguinte: a partir de 23 de outubro de 1954 (a data fatídica!), os leitores deixariam de ser ameaçados por vampiros, lobisomens e zumbis e as palavras “terror” e “horror” não poderiam ser usadas em títulos. Consequentemente, a maioria das editoras cancelou suas publicações do gênero para não ter mais problemas com os Comitês ou outras ameaças censoras.

Apesar disso, a grande EC sofreu danos muito mais sérios. Mesmo se submentendo ao código de ética, ela não se livrou da má fama e teve suas revistas devolvidas por várias livrarias e lojas especializadas. O único título que sobreviveu a essa triste série de eventos foi Mad.

E o Comics Code continuava seu reinado repressor.

A Censura no Brasil

A censura se expandiu pelo mundo inteiro. E o Brasil não ficou de fora. Na década de 60, os quadrinhos publicados aqui passaram a ser “vigiados” por um código de ética. Eram 18 artigos que proibiam cenas de sexo, violência e ofensas à moral, ao Estado, aos pais, aos professores, aos deficientes físicos e às religiões. Esse “acordo” foi assinado por quatro empresas: Editora Abril, Rio Gráfica e Editora, Editora Brasil-América e Empresa Gráfica O Cruzeiro.

Entretanto, o grande problema das editoras brasileiras era a autocensura. Talvez isso fosse (ou ainda seja) um reflexo do passado ditatorial do país, mas o certo é que, muitas vezes, as pessoas envolvidas na publicação das revistas acabavam esbarrando nos limites impostos por si próprias. Em consequência disso, várias obras ficaram literalmente mutiladas.

O último movimento brasileiro contra os quadrinhos aconteceu em julho do ano passado, com o lançamento da revista Dundum. A publicação foi parcialmente subsidiada pela Prefeitura de Porto Alegre (RS). Por esse motivo, principalmente, a Dundum sofreu acusações de pornografia, pelo vereador João Dib (PDS); de ser contra deficientes físicos, pelo candidato a governador Alceu Colares (PDT); e, devido a uma história, sofreu uma ação jurídica da Associação dos Cabos e Soldados da Polícia Militar. Resultado do escândalo: todos os exemplares se esgotaram, mas o segundo número da revista só saiu praticamente um ano depois. Dessa vez, sem nenhum apoio governamental.

A Fuga da Censura

Devido à vigilância do Comics Code, os artistas foram obrigados a descobrir novos meios de publicar seus trabalhos, sem cortes. Começaram a surgir, então, as editoras independentes, que não se sujeitavam à aprovação do código de ética. As revistas circulavam com a inscrição suggested for mature readers (aconselhável para leitores adultos). A idéia deu certo e agradou os leitores.

Essa fatia do mercado cresceu muito e não tardou para as grandes editoras “acordarem”. Stan Lee criou a EPIC, uma divisão adulta da MARVEL, onde seriam publicadas histórias abordando assuntos que não sairiam nas revistas tradicionais. Nessa trilha apareceram os chamados “quadrinhos de autor”, qualificação muito na moda atualmente e uma maneira eficaz de burlar o crivo da censura. Contudo, houve quem preferisse a “legalidade”. A NOW COMICS surgiu como independente e vinha razoavelmente bem, até seu editor, Tony Caputo, decidir, em 1988, submeter suas publicações ao código de ética. Todas foram aprovadas, mas a partir daí suas vendas despencaram e a empresa faliu pouco tempo depois.

Vários autores conseguiram “driblar” o Comics Code, mas não se pode dizer o mesmo quanto à censura em suas próprias editoras. Recentemente, aconteceram diversos casos na DC COMICS, como a saída de Rick Veitch da revista “Swamp Thing” (Monstro do Pântano), devido a um veto a uma história onde o personagem contracenava com Jesus Cristo. Em Asilo Arkham, Grant Morrison não pôde ver realizada sua insana idéia de assistir ao Coringa, vestido como a cantora Madonna, insinuando um provável relacionamento homossexual entre Batman e Robin. O Palhaço do Crime teve que se contentar com uma “passadinha de mão” nas nádegas do morcegão. Na minissérie Gilgamesh II, Jim Starlin foi proibido de levar adiante seu roteiro, no qual os dois irmãos demonstravam uma certa atração sexual entre si. Depois disso, Starlin retornou à MARVEL.

A voluptuosa Druuna, de Paolo Eleuteri Serpieri, também não escapou. Na saga “Creatura”, a revista italiana “L’Eternauta” simplesmente retocou as “partes íntimas” da musa e de seu parceiro numa cena pra lá de sensual. O genial Moebius tem sete números publicados numa coleção com seu nome pela EPIC. Entretanto, a edição número zero saiu depois, e pela DARK HORSE. Isso porque a história, chamada “Le Bandard Fou”, apresenta um homem que fica, constantemente, com o pênis ereto. Outro bom exemplo é a porno-minissérie Black Kiss (lançada no Brasil pela TOVIASSÚ), de Howard Chaykin. Nenhuma grande editora americana quis publicá-la por causa de seu forte apelo erótico. A saída para Chaykin foi o aeroporto. A VORTEX, do Canadá, topou a parada e vendeu milhares de revistas.

Um contraponto interessante sobre a censura nas HQs aconteceu na França. O livro “Images Interdites”, de Yves Premion e Bernard Joubert, saiu pela SYROS ALTERNATIVES e o grande destaque eram várias cenas de histórias em quadrinhos não publicadas graças à intervenção da “tesoura”.

Caem os Tabus

Com o passar dos anos e usando de certas “manhas”, os principais tabus impostos pelo código de ética foram caindo e se incorporando às HQs. Vários casos de homossexualismo pintaram nas páginas. Na minissérie Slash, uma guerreira fica desapontada ao descobrir que seu pretendido preferia passar a noite com outro rebelde. Estrela Polar, da Tropa Alfa, sempre escondeu de seus parceiros suas preferências sexuais até contrair o vírus da AIDS. Na série “The New Statesman”, da FLEETWAY QUALITY, dois heróis mantêm um caso. A revista Dundum apresentou aos leitores Rocky e Hudson, dois cowboys gays, criados por Adão Iturrusgarai. Extraño, um dos humanos escolhidos para ganhar superpoderes, na série Milênio, era homossexual. E, na revista 2000 AD, Zenith, de Grant Morrison, levou uma “cantada” de Meta-Maid, uma heroína coadjuvante que na verdade era um travesti.

Os romances entre mulheres sempre foram mais frequentes. Valentina, de Guido Crepax e Liz e Beth, de George Levis, apesar de se relacionarem bem com os homens, às vezes, optam por carícias femininas. Hopey e Maggie (Love & Rockets), dos irmãos Hernandez, também são adeptas dessa conduta. Em Sommerset Holmes (lançada no Brasil pela ABRIL JOVEM), a personagem-título se envolve com outra garota enquanto tentava recuperar a memória. E uma passagem clássica aconteceu em Camelot 3000, onde, por uma brincadeira do destino, Lorde Tristão reencarna num corpo feminino, mas isso não impede a consumação de seu amor com Isolda.

As drogas também deixaram de ser temas probidos nos quadrinhos atuais. Em Akira, Kaneda e sua gangue são ávidos consumidores de cápsulas alucinógenas. Ricardito, pupilo do Arqueiro Verde, já foi um viciado. E num dos capítulos da saga “Born Again”, escrita por Frank Miller e desenhada por David Mazzuchelli, Karen Page, a ex-namorada do Demolidor, aparece com uma seringa na mão, após prostituir-se. Aliás, essa edição, curiosamente, saiu sem o selo de aprovação do Comics Code.

Quanto à violência, então, as citações são inúmeras. Quem não se recorda das edições 6 e 13 de SANDMAN, verdadeiras carnificinas numa lanchonete e numa convenção, respectivamente? Ranxereox, de Liberatore, não hesita em estraçalhar os crânios alheios. Em Watchmen, de Alan Moore, o Comediante comete dois estupros, enquanto Rorschach elimina seus inimigos exibindo técnicas de torturas impressionantes. Moore voltou à carga em Piada Mortal, quando o Coringa violentou e aleijou Barbara Gordon, a Bat-Moça. Em “Squeak, The Mouse”, de Massimo Mattiolli, sexo e sangue são elementos primordiais. Wolverine e Lobo também não ficam atrás quando o assunto é matar, esmagar, trucidar ou destruir.

Muitos casos de censura obtiveram grande repercussão. Ente eles podemos citar Black Kiss, que teve edições recolhidas em diversos lugares. O mesmo aconteceu com “Score”, da PIRANHA PRESS (uma divisão da DC), tachada como “extremamente violenta”. O próprio Mestre dos Sonhos foi alvo de pesadas acusações quando da morte do leitor Michael J. Housenecht. O motivo: perto do corpo havia um exemplar da revista (nr. 19) e um bilhete assinado The Sandman. Além disso, em alguns países, instituições moralistas ainda tentaram repetir as famigeradas queimas de publicações de quadrinhos.

Em 1989, houve uma nova investida contra as HQs. Sob a liderança de Thomas Radecki, a National Coalition on Television Violence (Coalisão Nacional sobre a Violência na Televisão) ganhou espaço em toda a imprensa através de matérias exigindo um controle rigoroso sobre as publicações. Entre as explanações de Radecki “brilhavam” acusações de violência ao Mickey Mouse e de “impróprio para crianças” à Alice no País das Maravilhas.

Por enquanto, os quadrinhos estão vencendo essa batalha. Apesar dos ataques constantes e (na maioria das vezes) absurdos da censura, as editoras têm conseguido contornar todas as adversidades e, assim, publicar seus trabalhos, de uma maneira ou de outra. A esperança, mesmo longínqua, é de que, algum dia, o bom senso prevaleça e sobrepuje esse falso moralismo, determinando o fim da censura. De uma vez por todas.

O Código de Ética

O Comics Code é composto por 42 artigos, divididos em questões editoriais e publicitárias. Conheça alguns deles.

– Crimes jamais serão apresentados de forma a criar simpatia pelo criminoso, promover descrença nas forças da lei e justiça, ou inspirar o desejo de imitar criminosos.

– A palavra “crime” não deverá aparecer proporcionalmente maior do que outras contidas no título e nem ser exibida isoladamente na capa de uma revista em quadrinhos.

– Nenhuma revista em quadrinhos usará as palavras “horror” e “terror” em seus títulos.

– Cenas que apresentem tortura, canibalismo, vampiros, lobisomens, mortos-vivos, ou instrumentos associados a eles são proibidas.

– Profanações, obscenidades, conversas indecentes, vulgaridades ou palavras e símbolos que tenham adquirido significados indesejados são proibidos nos diálogos.

– A nudez, em qualquer forma, é proibida, assim como a exposição indecente ou imprópria.

– Personagens femininas deverão ser desenhadas de forma realista, sem exageros de quaisquer qualidades físicas.

– Divórcio não deverá ser tratado humoristicamente, nem representado como desejável.

– O tratamento de histórias de amor/romance deverão enfatizar o valor do lar e a inviolabilidade do casamento.

– Sedução e estupro não deverão ser mostrados nem sugeridos.

– Propagandas de bebidas alcoólicas e cigarros são inaceitáveis.

– Propagandas de livros de sexo ou instrução sexual são inaceitáveis.


Leandro Luigi Del Manto e Sidney Gusman
Informações extraídas do livro “The Illustrated History Horror Comics”, de Mike Benton, publicado pela TAYLOR PUBLISHING COMPANY

  (Publicado originalmente em algum dos sites gratuitos que armazenavam o e-zine CTRL-C)

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