Excommunicamus – A bruxaria nos quadrinhos

Noite de lua cheia. O céu está limpo, sem nuvens ou ameaças de chuva. No meio de uma floresta, em algum lugar, uma modesta cabana dá sinais de vida através das acanhadas luzes amareladas de velas e lampiões. Um pouco de fumaça sai de sua chaminé. É quase meia-noite…

Com hipnóticos olhos cor de mel, uma enorme coruja está atenta a tudo e, entre uma virada e outra do pescoço, crocita ruidosamente. Seu canto grave, entretanto, não intimida o réptil viscoso que rasteja pela folhagem seca. O vento se intensifica e muda sua entonação de voz. De melodioso assovio, torna-se uma lamúria gélida e sem fim. É quase meia-noite…

Na cabana, cochichos se escondem sob risadas apressadas. Ouvidos mais bem treinados certamente escutariam o tique-taque insistente de um relógio. Então, sem avisar, o caótico concerto noturno se cala. A coruja, agora muda, pisca seguidamente e afunda sua cabeça contra o corpo. Dentro da cabana, um cuco faz dueto com o relógio. Doze cantos e doze badaladas. A hora das bruxas. É meia-noite!

Caldeirões fervendo, asa de morcego, perna de sapo, veneno de aranha, pena de corvo… Irc! Que nojo! Bruxaria não! Ou melhor, bruxaria sim! Afinal, os quadrinhos são um grande refúgio de magia, bruxaria e seus derivados. Mas, antes, vamos dar uma olhada no pesadelo real que originou tantas lendas populares sobre as tão temidas bruxas.

Fala-se muito sobre a caça às bruxas e as impiedosas fogueiras inquisidoras, mas quase ninguém cita os responsáveis por essa chacina histórica. Na verdade, não existem culpados que você possa apontar, mas agentes de uma instituição que buscava uma maneira de se fortalecer mais ainda diante das constantes ameaças de perda de poder: a Igreja. Em 1231, o papa Gregório IX, através de sua bula, Excommunicamus, anunciou algumas “regras” para guiar os passos dos inquisidores profissionais no encalço daqueles que eram considerados hereges. Segundo ele, sua bula tornaria os julgamentos de heresia mais racionais, impedindo que a população cometesse atos de selvageria, tais como linchamentos e outras “diversões” do gênero. Apesar de suas intenções serem as “melhores” possíveis, Inocêncio IV autorizou a tortura como parte dos interrogatórios. Método bastante sutil para a época… Perseguições indiscriminadas não tinham mais fim, e até facções dentro da própria Igreja sofreram represálias. Toda a Europa se transformara numa imensa fogueira de ignorância. Acreditava-se que bruxas canibais e adoradoras do Diabo se reuniam para praticar todo tipo de malefícios através da magia. Segundo os religiosos mais fervorosos, as artes mágicas, boas ou más, eram um subterfúgio do demônio para enganar os homens e fazê-los perder a crença em Deus e, principalmente, nos cofres da Igreja… A condenação por heresia e a vinculação da bruxaria ao diabolismo no século XIV foram marcos decisivos para a ascensão do catolicismo na Idade Média.

Quando Inocêncio VIII redigiu a pomposa bula papal Summis desiderantes affectibus, em 1484, desencadeou, intencionalmente ou não, o início de uma Era dominada pelo medo e ignorância sem limites. Em sua onipotente presunção, ele quis instituir uma forma de combater todos os tipos de malefícios constatados pela Igreja até então. Dois anos depois, os inquisidores dominicanos Heinrich Kramer e James Sprenger escreveram o volumoso Malleus Maleficarum, um dos maiores tratados (junto com Formicarius de João Nider, 1435) sobre o assunto. De certa forma, o Malleus foi o livro de cabeceira do inglês Matthew Hopkins, o famoso caçador de bruxas que atuou por volta de 1650, desbravando uma impiedosa trilha de terror em nome de Deus.

Se a Itália, a França e a Alemanha foram os maiores palcos da Inquisição, a Inglaterra manteve-se isolada (por razões claramente religiosas). O manual de caça às bruxas de Kramer & Sprenger, durante muito tempo, só existia num círculo muito elitizado de estudiosos e cultos britânicos. Por outro lado, o Parlamento inglês teve três leis que condenavam a bruxaria como delito previsto na legislação. A última delas, que vigorou de 1604 a 1736, condenava as bruxas à pena de morte nos casos de reincidência de malefícios tais como roubos de tesouro, amor ilícito, destruição de gado ou bens e tentativas de assassinato. Além disso, era crime consultar, alimentar, recompensar ou se aliar a qualquer espírito mau.

Parece brincadeira, mas não é. Milhares e milhares de pessoas (a maioria formada por mulheres) foram condenadas à morte simplesmente por discordarem dos dogmas impostos pela Igreja, que ditava como deveriam viver e em que acreditar. Joana D’Arc (hoje santa), uma verdadeira heroína francesa durante a Guerra dos Cem Anos, chegou a vestir-se como cavaleiro para fortalecer o sentimento patriótico de seu povo e acabou sendo condenada à fogueira em 1431, acusada de heresia e feitiçaria. Vinte e cinco anos depois, uma comissão papal reveu o julgamento e ela foi canonizada. Ironia? Não. Benevolência… Quantas idéias não se perderam nesse período tão negro? Para se ter idéia, o astronônomo italiano Giordano Bruno foi queimado como herege por defender a idéia de que a Terra e outros planetas giravam em torno do Sol (teoria do heliocentrismo lançada por Nicolau Copérnico em 1512). Mais afortunado foi Galileu Galilei, o polêmico cientista de Florença, que tanta dor de cabeça causou à Inquisição. Com Siderus Nuncius (1610), um tratado que descrevia o relevo lunar, desvendava quatro satélites de Saturno e defendia o heliocentrismo, o “pai do telescópio” recebeu apenas um pequeno aviso de que suas afirmações eram contrárias às da Igreja. Depois, com a publicação de Dialogo (1632), que reforçava ainda mais as suas idéias anteriores, Galileu foi julgado como herege e acabou se retratando publicamente para não ter que ir para a cadeia ou sofrer uma penalidade mais drástica. E foi somente agora, no final deste século, que a Igreja deu pleno perdão a ele e retirou seu nome da lista negra. Incrível, hein? O que seria do “mago” Paulo Coelho se ele vivesse em plena Inquisição? É melhor não entrarmos no mérito da questão…

Hoje, felizmente, os tempos são outros e as bruxas e bruxos não amedrontam mais. Muito pelo contrário! Quem é que não se lembra da simpática Samantha, do seriado A Feiticeira, que marcou os anos 60 e 70? É lógico que sua mãe, Endora, fugia à regra e infernizava a vida de seu genro, James. Aquele velho problema com as sogras… Até o antigalã Jack Nicholson, que encarnou o Diabo no filme As Bruxas de Eastwick, de George Miller, sofreu na pele os encantos e feitiços de três lindas bruxas vividas por Michelle Pfeiffer, Cher e Susan Sarandon. Em Coração Satânico, de Alan Parker, o azarado detetive particular vivido por Mickey Rourke se vê atormentado por todo tipo de magia negra e descobre que foi contratado pelo próprio Lúcifer, magnificamente interpretado por Robert De Niro. Mais para o gênero do terror/humor, Warlock, o Demônio, de Seteve Miner, mostra um inquisidor do time dos “mocinhos” no encalço de um feiticeiro com cara de roqueiro que busca o Grimoire (um livro de magia negra). Tudo isso em pleno século XX!

David Lynch, o grande cineasta do obscuro, se enveredou pelos tortuosos caminhos do sobrenatural e criou o assustador pesadelo em capítulos chamado Twin Peaks. Também dirigido por Lynch há o estranhíssimo Coração Selvagem, onde a bruxinha boa e a bruxa má fazem aparições memoráveis. Para os amantes da lenda do Rei Arthur, John Boorman produziu o monumental Excalibur, que reconta toda a saga dos Cavaleiros da Távola Redonda, onde o mago Merlin e a feiticeira Morgana desempenham papéis fundamentais. E é claro que não poderíamos omitir O Nome da Rosa, de Jean-Jacques Annaund, uma citação direta à Inquisição. Embora não seja uma adaptação fiel do romance homônimo de Umberto Eco, este filme traz o sempre espetacular Sean Connery no papel de um monge franciscano que tenta solucionar estranhos assassinatos numa distante abadia.

Levando o tema para uma versão mais infantil, podemos citar Fantasia (produzido pelos estúdios de Walt Disney), um belíssimo desenho animado, de 1940, comandado pelas peripécias mágicas do ratinho Mickey, o aprendiz de Feiticeiro. Além das inovações de animação, Fantasia traz uma trilha sonora composta pelos maiores músicos da história. Ainda sob a batuta do papai Disney, as crianças perderam o sono com Branca de Neve e os Sete Anões (de 1937) e A Bela Adormecida (de 1959). No primeiro, a vaidosa e vingativa bruxa, madrasta da bobinha Branca de Neve (criada pelos Irmãos Grimm), inferniza a vida de sua enteada e da gangue de baixinhos. No outro, adaptação inspirada do conto de Charles Perrault, a feiticeira Malévola enfrenta o valente Príncipe na forma de um imenso dragão. Quem viu sabe que essa é uma das sequências mais incríveis já produzidas para o cinema.

Diretamente da Bélgica, Peyo criou os felizes Schtroumpfs (“Smurfs”, no Brasil), uma versão light de duendes pentelhos que vivem sendo perseguidos pelo azarado feiticeiro Gargamel e seu fiel assistente, o gato Cruel. Ei! Que é que há, velhinho? Pernalonga, o coelho cinquentão mais esperto do cinema, também passou maus bocados com a bruxa Hazel, que queria incluí-lo nos ingredientes de seu fumegante caldeirão.

E no mundo dos balões e onomatopéias, a Santa Inquisição não tem vez mesmo! Cheio de receitas miraculosas, Panoramix, o sábio druida da aldeia gaulesa criada por Goscinny & Uderzo, foi o manipulador da poção mágica que concedia força sobre-humana a Asterix e seu obeso e inseparável companheiro Obelix. Assim, eles podiam enfrentar o avanço dos atrapalhados romanos. Para quem aprecia patos (não para comer, é lógico!) a Maga Patalogika fazia parceria com a Madame Min para roubar a cobiçada moeda número 1 do velho muquirana Tio Patinhas. No Brasil, a simpática bruxinha Medéia, da Turma do Arrepio (criação de César Sandoval), apronta das suas com seus monstruosos amiguinhos. Dando um ar mais adulto ao assunto, o desenhista britânico John Bolton, produziu, em parceria com Chris Claremont (o mentor X-Maníaco), duas obras recheadas de fetiçaria: Marada, a Mulher Lobo e Black Dragon. Ambas retratam com seriedade a época medieval. Na mesma linha, Tim Truman concebeu TOADSWARTH, representante primogênito do movimento gótico em quadrinhos. Inspirado pela Guerra dos Cem Anos, François Bourgeon nos presenteou com os Companheiros do Crepúsculo, uma obra simplesmente magnífica que narra as andanças de um cavaleiro desfigurado e sem destino pelos campos de feitiçaria. Da Marvel, há exemplos famosos. O mais conhecido deles é Conan, o Bárbaro, que passou noites e noites em claro seduzido pelos encantos naturais irresistíveis de bruxas curvilíneas. Seu criador, Robert E. Howard, também concebeu Solomon Kane, um puritano da Idade Média que provou todos os dissabores da feitiçaria. Entre relâmpagos e trovões, o mago Shazam concedeu todos os superpoderes a Billy Batson, transformando-o no Capitão Marvel, o mortal mais poderoso da Terra (e de seu idealizador, C. C. Beck).

Merlin e Morgana, além da lenda saxônica que os mantêm “vivos” até hoje, receberam inúmeras versões nas HQs. A saga futurista Camelot 3000, de Mike Barr e Brian Bolland, talvez seja a mais significativa. Mas o demoníaco par também teve importância no surgimento de Etrigan, o Demônio, que também foi brilhantemente revitalizado por Matt Wagner na minissérie The Demon, um tratado de demonologia em quadrinhos. Ainda no gênero de super-heróis, o Dr. Estranho continua travando intermináveis batalhas astrais, enquanto, na Latvéria, o tirano enlatado Dr. Destino faz uso de magia e tecnologia para infernizar a vida de seus adversários. Tex Willer, o ranger mais famoso do Velho Oeste, ganhou alguns cabelos brancos quando enfrentou as bruxarias de seu arquiinimigo Mefisto. O mal-encarado feiticeiro Mordru fez jus às suas qualidades e tornou-se um dos mairoes inimigos da Legião dos Super-Heróis, no século XXX.

Nos chamados quadrinhos adultos seria sacrilégio deixarmos de citar a minissérie Livros de Magia, escrita por Neil Gaiman, onde praticamente todos os personagens mágicos da DC Comics são retomados, e Dylan Dog, de Tiziano Sclavi, que, além de solucionar os casos mais escabrosos, provou ser mais um sucesso absoluto do grande editor e aventureiro Sergio Bonelli, da Itália.

Apesar de tudo o que foi dito nesta pretensa matéria sobre Inquisição e bruxaria, nunca haverá espaço suficiente para explorarmos o assunto com o merecido respeito. Para se ter uma idéia, Sandman, John Constantine, e o Monstro do Pântano, personagens considerados como a elite dos quadrinhos de horror, têm envolvimentos tão fortes no reino do sobrenatural que seriam argumento mais do que suficiente para receberem matérias próprias, tamanha a riqueza de citações em suas histórias. Por essa razão, encerramos nossa breve incursão mística com a obrigação de retomarmos o tema em breve. Um brinde aos bruxos e bruxas de todas as épocas. Que os tempos negros da Inquisição não voltem jamais.


Leandro Luigi Del Manto

  (Publicado originalmente em algum dos sites gratuitos que armazenavam o e-zine CTRL-C)