A infância são lugares e ruídos

Marcelo Franco

Vocês todos aí preocupados com os rumos do país e eu aqui cumprindo um ritual de recordações que é um dos meus prazeres de domingo. Envolve álbuns antigos de fotografias, pesquisas na internet e até caminhadas pelas ruas e vielas da minha juventude. Sendo leitor de Proust, Pedro Nava e Eric Kandel, desde cedo eu estava destinado à sina de lembrar. Meu cérebro fervilha de passagens muito antigas, coisas que vi e imagens e sons há muito distantes do meu “eu presente”. “Les événements m’ennuient”, mas apenas os atuais, nunca os passados.

Vendo fotografias da minha infância, me veio uma dúvida estranhíssima: ainda há Melissas? Sim, aquelas sandálias de plástico que as garotas usavam na “minha infância querida que os anos não trazem mais” — o que foi feito delas? Toas as garotas que aparecem nas fotos antigas a estavam usando no momento do instantâneo que as imortalizaria em imagem para mim.

Há anos nem mesmo a palavra me vinha à memória, e eis que, de repente, Melissa! É todo um passado que renasce — ou que sempre esteve à minha volta sem que eu percebesse. A simples lembrança das tais sandálias também me joga numa espécie de túnel do tempo — como o carro de Marty McFly e Doc Brown em “De Volta Para o Futuro”, esse nome me leva diretamente ao passado.

Se as garotas usavam Melissa, nós meninos calçávamos tênis Montreal — que patrocinavam o programa “Domingo no Parque” (“Você troca uma bicicleta por uma chupeta velha?”, perguntava Silvio Santos; “Siiiimmm!!!”, respondia o incauto). Ou tênis Redley, com a parte de trás dobrada e os calcanhares de fora. Ou ainda, luxo dos luxos, All Star de cano longo — não o nacional, mas o made in USA, que tinha dois furinhos nas laterais.

Havia calças baggy e semi-baggy para as garotas. Calças e camisas em cores cítricas da Company, K&K ou Fiorucci para nós meninos (calças Zoomp eram um sonho distante: caras e usadas só pelos mais descolados). Carteiras emborrachadas da OP (com velcro). Chaveiros de fio de telefone da Pier. Relógios Champion que trocavam de pulseira. Era um mundo de horrores: garotos com cabelo mullet (é assim que se escreve?) usando tênis verdes e com os calcanhares à mostra, calças laranja, camisetas pink, relógios amarelos, carteiras azuis. Na hora do futebol, Kichute com cadarços amarrados nas canelas. Bocas abertas para mascar os enormes chicletes Bubbaloo. Como, como pudemos?

A atitude, por assim dizer, vinha com tudo o que era externo a nós mesmos. Usávamos essas roupas, mas também escrevíamos com Bic 4 Cores ou com caneta Kilométrica, a caneta simpática por um preço milimétrico. Perfume Azzaro (dizíamos, brincando, “arrasô”). Bebíamos Super Nescau, a energia que dá gosto. Danoninho valia por um bifinho. Queríamos ter barba para fazê-la com Prestobarba: a primeira faz tchan, a segunda faz tchun e… tchan-tchan-tchan! Mas não sei se as mulheres usavam Impulse — “Se algum desconhecido um dia lhe oferecer flores, isso é Impulse!”.

E víamos “Armação Ilimitada” e “TV Pirata”. MacGyver detendo um vazamento de ácido sulfúrico com uma barra de chocolate. Silvio Santos anunciando “Pássaros Feridos”: “É um filme muito bom, um filme a que eu já assisti várias vezes. Mas podem ver a novela da Globo. ‘Pássaros Feridos’ só começa depois que a novela acabar”. O baixinho da Kaiser. A menina do Tang. Fernandinho da camisa (“Bonita camisa, Fernandinho!”). Araquém, o showman. Tetê Espíndola cantando, esganiçada, “Escrito nas Estrelas” (primeiro lugar no “Festival dos Festivais”). Víamos repetidamente nossas séries favoritas: “Era uma vez três belas garotas que cursaram a Academia de Polícia. E todas cumpriam tarefas muito perigosas. Mas eu as tirei de tudo aquilo e agora elas trabalham para mim. Meu nome é Charlie”. E também: “Steve Austin, astronauta. Um homem semimorto. Senhores, nós podemos reconstruí-lo. Temos a capacidade técnica para fazer o primeiro homem biônico do mundo. Steve Austin será esse homem. Muito melhor do que era. Melhor, mais forte, mais rápido”. “A Gata Comeu”, com toda aquela turma perdida numa ilha. No cinema, “Top Gun” e “Karatê Kid”. Para que mogwais não se transformassem em gremlins, não deviam ser expostos a luz forte, não podiam ser molhados e tampouco deviam ser alimentados depois da meia-noite.

Cantávamos “Take My Breath Away”, “I Just Called to Say I Love You” ou, os mais moderninhos, “Reggae Night”. Em vez de cantar “Na madrugada, vitrola rolando um blues/ Tocando B.B. King sem parar”, dizíamos “Trocando de biquíni sem parar”. Também era preciso saber a longuíssima letra de “Faroeste Caboclo”. (Só para especialistas: quem se lembra das bandas “Afrodite se Quiser”, “Heróis da Resistência” e “Picassos Falsos”?). As músicas eram gravadas em K7 e, quando tínhamos idade para sair com o carro dos pais, o toca-fitas tinha de ser retirado e carregado nas mãos para que não fosse furtado (e não era um trambolho: era, antes, sinal de status). Como, como pudemos?

A tecnologia avançava: no colégio, fazíamos provas copiadas em mimeógrafo (todo mundo ficava meio aéreo com o cheiro de álcool). Achávamos que os primeiros microondas davam câncer. Decorávamos programações enormes para nossos computadores CP-500. Pernas e braços quebrados eram engessados — ah, o prazer de desenhar no gesso da garota por quem se era apaixonado… E, para sermos modernos, falávamos “numa nice” e “da lata” (o legal era saber explicar a origem da expressão…).

Havia as dificuldades, claro. Juntar moedas naqueles cofrinhos distribuídos pelos bancos. Conhecer alguém que pudesse trazer novidades da Zona Franca de Manaus. Ter medo, no colégio, de topar com a “loira do banheiro”. Rodar discos ao contrário para ouvir mensagens cifradas. Era comum jogar ovos e farinha nos aniversariantes. Tênis novos ganhavam pisões para ser batizados. Jogando “adedonha” e saindo a letra “D”, ninguém nunca decidiu se “dragão” e “dinossauro” valiam como animais e se “dourado” era cor. Nas locadoras, havia uma sala secreta com os melhores filmes, que precisavam ficar escondidos porque eram todos pirateados.

Essa era a nossa vida. (Teste rápido para saber se você foi adolescente nos anos 80: quais os nomes de todos os filhos de Pepeu Gomes e Baby Consuelo? Resposta: Sara Sheeva, Zabelê, Nanashara, Pedro Baby, Krishna Baby e Kriptus Rá.) Vimos tudo isso. Só não vimos o cometa Halley, que o mundo todo procurou em 1986 e não encontrou.

Como disse, era mesmo um festival de atrocidades. Mas as Melissas não entravam nessa lista: afinal, as garotas mais cobiçadas tinham as suas. É curioso: não consigo me lembrar das meninas sem também pensar nas Melissas que elas usavam. E elas, as garotas, eram um mundo à parte. Estavam sempre por ali, mas nunca muito perto, não havia a interação que existe hoje. Nas festinhas, meninos ficavam num canto, meninas se aglomeravam noutro. Contato, só quando se dançava uma lenta (“dançar a lenta”! Quando algum amigo dizia que devíamos nos aproximar da garota que queríamos, respondíamos que iríamos esperar para “dançar a lenta” — e, pergunto-me agora, por que diabos os amigos não se aproximavam das garotas que eles queriam?). Mas, sôfrega e desordenadamente, nós as vigiávamos, perseguíamos e irritávamos. Suas existências povoavam as nossas.

Nós, meninos, é claro, disputávamos. Estremeço de medo retrospectivo só de pensar que sou um sobrevivente (como todos os homens): corríamos velozmente em cima de muros e telhados, pulávamos grades com pontas, mergulhávamos em montes de areia pulando de cima de árvores, onde ficávamos com a cabeça perto de fios de alta tensão, descíamos a rua 102 em carrinhos de rolimã quase até a avenida 83, rezando para que os freios (uma trava das rodinhas) funcionassem (se não funcionavam, a solução era pular do carrinho ou virá-lo com o peso do corpo, deixando a pele no asfalto), voávamos com bicicletas, jogávamos pedras pontudas uns nos outros. Mas está tudo lá: ri, briguei, amei, odiei. Vi nascimentos, conheci a injustiça da morte. Descobri o amor e suas alegrias e dores. Conheci a amizade, com suas traições à espreita. Todas as experiências fundadoras, por assim dizer. Alguém já disse que se engana quem quer que a infância seja um tempo de inocência plácida: é preciso aprender a lidar com o mundo, com o mistério do amor e da morte e com os poderes da sexualidade, aquilo que Miguel de Unamuno chamaria de “sentimento trágico da vida” — eu, por exemplo, com 12 ou 13 anos sabia tudo, digamos, sobre o funcionamento de joguinhos eletrônicos, mas não sabia lidar com uma garota ou tomar um ônibus. Mas aos 15 ou 16 já havia aprendido minhas lições na rua.

Tudo, tudo ficou na memória, e essa obsessão já me fez escrever muitas vezes sobre a rua da minha juventude. A infância, alguém já escreveu e repito aqui, são lugares: a rua, a escola, a chácara, o clube. E também é um charivari contínuo, todo um ruído — risos, músicas soltas, berros, escapamentos de carros, barulhos de coisas que caem — ao redor desses lugares.

Esforçando-me um pouco, as imagens voltam-me nítidas. Fecho os olhos agora e me lembro de novo das meninas, daquilo que então já pressentíamos como um mistério. Elas — sempre um mundo à parte — cantavam a antiga cantiga de roda: “nestarua nestarua tem um bosque/ quesechama quesechama solidão/ dentrodele dentrodele mora um anjo/ queroubou queroubou meu coração”. Depois ladrilhavam a rua “compedrinhas compedrinhas de brilhante”. E sim, as meninas ainda cantavam cantigas de roda: o mundo mudou só na década de 90; na década de 80, durante minha infância e adolescência, Goiânia era como uma cidade do interior, havia cantigas, havia muros baixos, havia inocência, havia jardins. Havia jardins — essa frase explica tudo: nos anos 90, já não havia mais jardins.

É uma vigilância eterna pairava sobre nós, principalmente das mulheres — minha vida foi povoada por mãe, irmã, tias, primas, toda uma estrutura estabilizando seus pequenos homens em construção. Mas havia as garotas. E havia as Melissas que as garotas usavam.

Fecho os olhos novamente e as vejo agora individualmente e não em grupo. Lá vem a Mariana com suas pernas já longas (Melissa branca. Modelo “Aranha”, descubro agora no Google). Lá estávamos nós em cima de um muro esperando a tarde toda para ter um vislumbre da Letéia, dos seus assombrosos olhos verdes e dos seus dentes que de tão brancos brilhavam ao sol (outra Melissa branca). Certa vez eu a vi, de cima de um telhado, tomando banho — e essa imagem foi um cataclismo que me atormentou durante muitas semanas. Lá estão Alessandra e Geane (Melissas rosa iguais), que vieram de São Paulo e eram mais velhas do que nós, nos atiçando e nos deixando humilhados pelo que sentíamos e ainda não entendíamos. Patrícia, que colava figurinhas “Amar é…” e escrevia mensagens nos meus cadernos (Melissa verde, como seus olhos). A adolescência é uma sequência de oportunidade perdidas, não?

Sobretudo, não consigo deixar de pensar naquela moça, aquela, de pernas longas e pele clara e que, muitos anos depois, causaria um turbilhão na minha vida (a dor de querer e, depois, a dor de esquecer). O que me agonia é que não pude vê-la, com 12 ou 13 anos, usando Melissa Aranha e correndo pelas ruas do bairro (as garotas eram “sapecas” ou “levadas”, diziam os pais. Ela, com certeza, deve ter sido — ainda é. Mas ninguém mais diz isso). Essa nostalgia do que não vi dói, profunda e irreparavelmente, em algum lugar do meu peito.

Nosso destino inexorável é… Bem, é aquele. Por isso, relembrar é tão importante. E também viver o dia: “carpe diem” etc. etc. Assim, para que as obrigações chatas e cotidianas não me façam esquecer que a vida deve ser vivida, recito diariamente para mim mesmo estes versos de Manuel Bandeira:

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?
— Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.

Todas aquelas garotas e Melissas vivem apenas em mim, e, recordando, posso fingir que um dia o mundo foi mais simples e divertido — como uma menina sapeca de Melissa correndo pelas ruas do bairro.

Pensando bem, não quero saber se ainda fazem Melissas.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *