Trindade

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Então, crianças, ando meio que encantado com leituras alheias de alhures e acabei percebendo o quanto cada vez mais, menos tenho escrito por aqui neste nosso cantinho virtual. Poderia dizer que é excesso de trabalho (que é verdade), que nas horas vagas tenho me dedicado a outros hobbies (que é verdade), que passei os últimos meses num sufoco cerebral e/ou emocional que não me permitia parar para pensar em novos ou velhos causos (que é verdade), ou poderia simplesmente dizer que estava com uma inenarrável preguiça e sem vontade de escrever (que é mentira, mas tem mais a minha cara).

Então, apesar de muitas ideias para muitos causos de coisas recentes e atuais que vêm acontecendo, preferi me pautar um pouco no longínquo passado de minha infância e adolescência (como se isso interessasse pra alguém… – mas o blog é meu e gosto de encará-lo como minha própria “penseira virtual”) e dentre três ou quatro episódios, me lembrei de Trindade.

Ou seja, é isso mesmo: senta que lá vem história!

Antes de mais nada é preciso falar do Vilaça. Até hoje não consigo me lembrar de como foi que nos conhecemos. Talvez tenha sido da ETEP, quando de minha rápida passagem por lá – o que por si só já dá um outro causo… Só sei que em determinado momento e período de nossas adolescências ficamos amigos e vez ou outra saíamos juntos para uma ou outra desventura. Filho único, morava com os pais e era um ou alguns anos mais velho que eu. Hoje em dia, para todos nós, “adultos” que somos, uns anos a mais, outros a menos, não fazem diferença nenhuma; mas na adolescência – entendam – isso muda tudo! Os adolescentes de quatorze olhavam com respeito para os de quinze, já no segundo grau, que eram desprezados pelos de dezesseis, mais experientes, que por sua vez eram ignorados pelos de dezessete… E os de dezoito? Esses já eram praticamente adultos! Bem, vocês entenderam. Anos ou mesmo meses já faziam toda a diferença para determinar com que turma você andava.

E por isso mesmo essa nossa amizade, com ele um pouco mais velho, era diferente: não tínhamos muitos amigos em comum, pois a turma dele já era de “outro nível”… Como nunca dei a mínima trela pra esse negócio de turma, invariavelmente aprontávamos as nossas somente a dois mesmo.

Assim foi com Trindade.

Estava eu lá em casa, no bom e velho bairro de Santana, do alto dos meus quinze ou dezesseis anos (meados da década de oitenta, tá bom?), numa época em que para gente simplesmente não existia internet, blogs, tevê a cabo, séries, celulares, redes sociais – nenhum desses nossos vícios modernos que, invariavelmente, nos custam um pedaço da alma. Ou, ao menos, da sanidade. Estava lá, fazendo o que qualquer bom adolescente daquela época fazia durante as férias numa tarde abafada de verão: bestando.

Do nada, surge o caboclo no portão de casa.

– Adautô! Adaaauto! Ô, Adauto!

Fui até a sala, abri a portinhola da porta (isso mesmo: as casas de antigamente não tinham o tal do “olho mágico” – algumas até tinham, mas só as de gente mais abastada… – e, na sua falta, as portas tinham uma portinha, mais ou menos do tamanho de um caderno escolar, na altura dos olhos), e de lá mesmo gritei:

– Calma, ô desinfeliz! Já ouvi. Péraê…

Abri a porta e, como desde aquela época eu e minha pele moreno-hipoglós já tínhamos treta da brava com sol quente, dali mesmo do alpendre já falei…

– Desembucha.

– Vamos pra Trindade?

– Quando?

– Agora.

Essa era boa. Dois moleques durangos, assim, do nada, resolvem viajar. Cumassim? E dinheiro? E preparativos? E dinheiro? E locomoção? E dinheiro? E planejamento? E, sobretudo, dinheiro?

Bem, parem de pensar com essas suas cabeças adultas de século vinte e um. Estamos falando de um outro tempo, uma outra época, uma outra vida. Nada disso era necessário. Tá, talvez um tiquinho de dinheiro ajudasse um pouco – e normalmente era só esse pouco mesmo que nós tínhamos.

– Beleza! Me dá um tempinho…

Corri pra dentro de casa, peguei minha mochila de lona, coloquei umas mudas de roupas (que é como chamávamos cada um dos conjuntos de calça-meia-cueca-camisa para uso a cada um dos dias fora), uma ou duas blusas (caso esfriasse), o único calçado era o que já estava no pé mesmo, assaltei umas duas latas de feijoada pronta da despensa (melhor coisa pra não morrer de fome quando não se tem opção acampando), juntei a velha barraquinha canadense de dois lugares que um abilolado de um amigo de meu irmão, lá da USP, e que morou um tempo em casa, acabou deixando pra trás, fucei em todas as gavetas ajuntando todo o pouco de grana que tinha e pé na estrada!

Tenho certeza que entre uma coisa e outra deve ter havido um momento em que eu deva ter falado com minha mãe, talvez pedindo permissão, mais provavelmente comunicando que iria viajar. Mas esse detalhe simplesmente não existe mais na minha memória. Deve fazer parte dos bad blocks do meu cérebro, danificados ao longo dos anos por uma nada suave vida etílica…

( Continua, devagar como a Trindade daquela época,
na medida em que eu não ficar com pressa de contar logo essa história… )