A Estória do Jovino

Mais um trecho do livro “Pedaços e Pedacinhos” (falei dele aqui) – uma coletânea dos escritos e pensamentos de Brasílio Duarte (1915-1998), que traz a viva lembrança de uma São José dos Campos de outrora…

Era uma tarde de intenso calor, por ocasião do renceseamento nacional do ano de mil novecentos e quarenta, quando adentramos no casebre, a fim de colher dados para o censo demográfico.

Ali estava um casal de velhos que, bondosos e solícitos, acolheram-me com uma hospitalidade que jamais vou esquecer. Enquanto a senhora acendia o seu tucuruva (um fogão de um cupim cortado ao meio e ao cumprido com buracos em cima e com os fundos e a boca ao nível do chão batido), o velho, muito desinibido, nos contava: “Seu moço, eu num sei a minha idade”.

Só me alembro de tê visto, uma vêis, o imperadô, quando ele passô na estrada, numa carruage que briava e que, atrais dele e na frente, iam uns cavalêro cuma espada e uns cavalo munto bonitos. Ah!… Isso já faiz tanto tempo… eu era minino… e tava levando água, café e broa pros home que trabalhava no ‘eito’.

“Tudo isso se passô lá pelas bandas de Taubaté, perto da fazenda de um tar de Visconde. Mai não é isso que eu quero contá, deis que mecê me perguntou a minha idade. O senhor tem um tempo? Será que não tô atrapalhando?”

Tenho tempo, seu Jovino. Pode contar.

“Tá bão. Ô Tereza, arrume um café pra nóis. Intão bamo lá”.

A Estória do Avô de Jovino

“Meu avô (que Deus o tenha) que morreu com mai de cem janêro, um dia me contou e aconseiando: “Meu neto, caminhe bem no seu destino, levando a benção deste véio, porquê vancê vai vê que nóis nem sabemo pensá, de tão bão e tão feio ao mermo tempo”.

Ó! Jovino, me contaro que uma veis chegaro nestas banda uns índio que vierum fugido.

Tinha um índio véio pajé, uma índia e argum índio e índia mais môço e criança.

O véio pajé era muinto bão. Ensinava tudo com muinta sabidoria. Conhecia remédio do mato, eles conheciam o que era veneno e trabaiavam e caçavam.

Munto depois, apareceram uns hóme de rôpa preta cumprida, falavam mansinho, davam presente pros índios, ajoeiavam, ajuntavam as mãos erguidas prô céu… ninguém entendia nada, nem sabiam como foi que eles apareceram na “Ardeia”. Mai não tiverum medo.

Eles confiavam no Pajé, proquê ele sabia muinta coisa, apesá de já tê muinta idade.

Os padre, que eram os hóme de rôpa preta, procuravam falá com os índios e perguntavam: “Como é o seu nome meu fio? Os índios que não podiam entender, queriam que o padre falasse com o Pajé e diziam: guaianá, guaianá!

Intão os padres ficaro sabeno que eles eram da tribu Guaianá. O Pajé tava sentado perto da sua casa que era coberta com folha de coquero.

Tinha com ele arguns índios e índias de rôpa de pele de bicho, colar e pena de cor.

O véio, que era munto sábio, fêis sinar pros padre que eles precisavam aprender a língua dos brancos pra podê entendê. E assim foram fazendo até que ficô mai fácir. Argum tempo despois, os padre trouxeram um tar de “otoridade” e esse hóme mandô que todo mundo dali se mudasse pra ôtro lugar mais alto que era prá mor de se defendê mió dos inimigos. Esse lugá ficava a légua e meia dali. Quando tava nessa artura, o chefe dos padre mandô que eles fossem embora pra ôtro lugá.

E vieram ôtros padre, mai não eram tão bãos como os premêros. Judiavam dos índios, pegavam as índias pra escrava e ainda trouxeram uns hóme branco que num eram padre e que faziam tudo de ruim pros coitado.

Então Jovino, dizem que o Pajé ficô doente e morreu e tudo ficô meio largado.

Trouxeram mais gente branca, vieram outros índios deferentes e tudo ficô muito ruim de vivê na nova “ardeia”. Sem o véio Pajé, ninguém mai obedecia sem apanhá e até havia ôtros castigos ainda pió. (Jovino faz uma pausa).

Seu moço, é mió nóis i parano por aqui, mai ante de pará quero dizê só mai um poquinho.

O finado avô disse que logo veio um tar de “carregado” e reuniu a gente do lugá pra dizê que deis daquele dia, a “Ardeia” tinha nome. Chamava-se “Vila de São José do Paraíba” e que lá onde tinham começado se chamava “Vila Véia”. Ói seu moço, isso foi o que meu finado avô me contô. Pode sê que arguma coisa num seja bem a verdade… nossa famia é tudo pescadô…

Foi nesse momento que Tereza apareceu: “Eta véio prosa. Chega de contá lorota. Convide o moço pá tomá café. Ói moço, é café de rapadura com farinha de mio. Tem cada biju que é buniteza. Tudo é nossa mesmo, daqui do sítio. Mecê pode bebê sem vergonha, mecê tá na sua casa, num faça luxo”.

Jovino – meio encabulado, balbucia aos meus ouvidos: “o Sítio é do Belardo, nosso neto, é ele que trata de nóis. num faça causo da Tereza… Ela é um poço ranzinza… num tem leitura… mai é boa muié… já tem quaji oitenta…”


Eu poderia ter simplesmente parado por aqui, pois o comentário final já fecha com chave de ouro essa história (ou seria estória?). Mas lembrei-me de outro livro que tenho: São José dos Campos e sua História, de autoria de Agê Junior. Na página 35, ao citar as sesmarias doadas na região, curiosamente revela:

Em 1650, outra Sesmaria foi concedida, conforme o documento abaixo transcrito:

…’atendendo à Lei de 1611, que facilitava e protegia a infiltração dos brancos no desbravamento de regiões inhospitas, organizando e mantendo postos de ligação, defesa de remonta, nos percursos para as minas em exploração, ou nas catas de ouro, foi concedida a Sesmaria requerida, de quatro léguas quadradas, a Angelo de Siqueira Afonso, filho de Antonio Afonso, – fundador de Jacareí, – sua esposa Antonia Pedroso de Morais e um conterrâneo de nome Francisco João Leme. foi dada posse dessa Sesmaria em 1650, e a área situava-se no antigo Rio Comprido, mais tarde Vila Velha, por ter o ‘aglomerado sido removido’ para lugar de melhor defesa contra o gentio. A Sesmaria indicada está registrada nos Livros 11 e 13 das Sesmarias Antigas, atualmente arquivados no Tesouro Nacional da República, e foi assinada por Dyonísio da Costa, Capitão-Mór residente em Taubaté, então sede regional de todo o território entre São Paulo de Piratininga e o altiplano da Serra que limitava São Sebastião do Rio de Janeiro’.