Cordel da Pirataria

Boa sacada lá do Bardo (com arte de Karlisson Bezerra).


Naquele tempo antigo
Dos grandes descobrimentos
Navios cruzavam mares
Levando dor e tormento
Às terras por toda a vida
Fossem novas ou antigas
Sem respeito e violentos

Iam à costa africana
Com suborno ou então bravos
Deixavam terra levando
Dezenas de homens, escravos
Outros levavam empregados
E muitos deles, coitados,
Eram mortos por centavos

Esses homens nesses barcos
Dominavam o mar selvagem
Subjugando outros povos
Mas tinham uma boa imagem
Pois nos livros de História
Ainda hoje levam glória
Por cada dessas viagens

Nesse mar, sem ter direito
A ter u’a vida de gente
Muitos se reagruparam
Num caminho diferente
Nessa realidade ingrata
Criaram as naus piratas
E enfrentaram o mar de frente

Piratas, os homens livres
Diferiam dos demais
Dentro da embarcação
Tinham direitos iguais
Cultivavam parceria
Contra toda a tirania
Confrontando as naus reais

Atacavam naus tiranas
Roubando o que foi roubado
Matavam os ocupantes
Escravos, são libertados
Onde gastar o obtido?
Tudo o que era conseguido
Mundo afora era trocado

Esses eram os piratas
Daquela época esquecida
Que se ergueram contra reis
Nessa tortuosa vida
De “crimes”, mas foi assim
Pois em alto mar, no fim,
Não tinham outra saída

Mas vamos falar agora
De algo dos dias atuais
Que é estranho e nasceu
Já nem tanto tempo faz
Hoje o tema da poesia
Chamam de pirataria
E os direitos autorais

Para contar essa história
De leis, direito e valor
Temos que entender primeiro
Como a gente aqui chegou
Por isso, como esperado
Vamos voltar ao passado
Onde tudo começou

No ano de 62
Do século XVII
O país, a Inglaterra
E a censura, um canivete
Cortava a produção
De tudo que era impressão
Pois besta em tudo se mete

E os livreiros desse tempo
Cada editora antiga
Precisava de um aval
Para que imprimir consiga
O aval do Rei, do Estado
Que se não for do agrado
Deles, a impressão não siga

Um monopólio formado
Pra controlar a leitura
Terminou dando poderes
Além do que se procura
Dessa forma os livreiros
Cresceram muito ligeiro
Nessa forma de censura

Já no século XVIII
Bem lá no ano de 10
Naquela mesma Inglaterra
Uma nova lei se fez
Hoje ninguém lembra mais
De direitos autorais
Foi ela a primeira lei

Right em inglês é direito
E copy é copiar
O Estatuto de Anne
Só disso ia tratar
Direito direcionado
Aos livreiros, que afetados
Tinham que se acostumar

Pois copyright falava
De cópia em larga escala
E o direito é o monopólio
Sobre cada obra criada
E esse direito, notamos
Durava quatorze anos
E o monopólio acabava

Note que essa nova lei
Não veio favorecer
Os livreiros da Inglaterra
E o monopólio a nascer
Não era bem algo novo
E era o bem ao povo
Que essa lei veio fazer

Nasceu o Domínio Público
Nesta distante Idade
Os livreiros exploravam
Seus direitos à vontade
Mas terminado o prazo
Toda obra era, no caso
Doada à Humanidade

Os livreiros reclamaram
Pedindo ampliação
Para aquele monopólio
Mas não teve apelação
Pois se fosse concedida
Mais outra seria pedida
E o prazo seria em vão

Isso lá naquele tempo
Eles podiam prever
Que se o prazo aumentasse
De novo iam querer
Sempre após mais alguns anos
E o prazo se acumulando
No fim “pra sempre” ia ser

Mas o mais interessante
Pros livreiros e editores
É que o que eles previam
Houve com novos atores
E hoje o direito autoral
Vale tanto, que é anormal
Pra agradar exploradores

Por que, vê se faz sentido
A desculpa que eles dão
Pra monopólio de livros
É incentivo à criação
Se é assim, por que, ora pois
Ele dura anos depois
Da morte do cidadão?

Que eu saiba depois de morto
Eu garanto a você
Por grande artista que seja
Ele não vai escrever
Só se for, caso aconteça
Com um médium, mas esqueça
Não é o que a Lei quis dizer

O direito agora vale
Por toda a vida do autor
Depois mais setenta anos
Depois que a morte chegou
Pra incentivar o defunto
Mesmo estando de pé junto
Continuar a compor

Por que funciona assim
Não é difícil notar
“Incentivo” é só desculpa
Para o povo aceitar
Quem lucra são editores
Sendo atravessadores
É a Lei da Grana a mandar

As empresas mais gigantes
Que corrompem os governos
Que publicam propagandas
De produtos tão maneiros
Com um gigantesco ganho
Artistas são seu rebanho
E a Lei garante o dinheiro

Toda essa exploração
Funciona desse jeito
O pobre artista cria
O seu trabalho perfeito
Um trabalho bom e novo
Ele faz é para o povo
Poder ver o que foi feito

Para o povo ter acesso
Ao que ele produziu
Não é algo assim tão fácil
Atingir todo o Brasil
Pra isso que produtores,
Gravadoras, editores
Tudo isso se construiu

Porém esse monopólio
Garantido ao autor
É o preço que eles cobram
Pra fazer esse “favor”
Se a editora tem confiança
Facilmente a obra alcança
Além do que se sonhou

O autor perde o direito
Sobre a sua criação
Quem vende é atravessador
E lhe paga comissão
Alguns centavos pingados
E o maior lucro somado
É da empresa em questão

Vejam só que curioso
São “direitos autorais”
Mas pra chegar no mercado
Alguns contratos se faz
E os direitos de repente
A que tanto se defende
Do autor não serão mais

Como se vendesse a alma
Para uma empresa privada
Nem ele pode copiar
A obra por ele criada
Mesmo quando ele morrer
A empresa é que vai dizer
Como a obra é usada

Autores bem talentosos
Que se encontram no caixão
Sem obras suas à venda
Com fãs, uma legião
Mesmo a pedidos dos fãs
Toda essa força é vã
Pra ter republicação

Pois o direito estará
Numa empresa transferido
Que é quem dirá se é viável
Atender a esse pedido
E se ela não publicar
Nenhuma outra poderá
Pois o direito é exclusivo

Esse jogo de direitos
Ilude a maioria
Dos artistas existentes
Como uma loteria
Onde muita gente investe
Mas pra poucos acontece
Algum sucesso algum dia

E os artistas que investiram
Enriquecendo a empresa
Olham para os de sucesso
Não percebem serem presas
Sonhando chegarem lá
Seguem a financiar
Essa indústria com firmeza

Quem tem direito exclusivo
Cobra o quanto quiser
Esse é o mal do monopólio
Mas sempre é assim que é
Quando surge alternativa
A essa prática nociva
Reclamam, não saem do pé

Copiar é ilegal?
É, mas a Lei que hoje vale
Foi feita por essa gente
Que corromper tudo sabe
Alterando o Direito
Para funcionar do jeito
Que melhor a elas agrade

Desde os tempos mais antigos
Alguém canta uma cantiga
Outro aumenta um pouquinho
E ela cresce e toma vida
Na cultura popular
Logo ela se tornará
Bem melhor do que a antiga

Com cultura é desse jeito
Que se faz evolução
Sempre se inspira nos outros
Na imagem, prosa ou canção
Do Teatro à Literatura
Cultura gera cultura
Não queira fingir que não

Hoje com toda mudança
Que fizeram, quem diria?
Compartilhar e expandir
Chamam de Pirataria
E o direito à cultura?
Criou-se uma ditadura
Como há muito se temia

O que querem impedindo
O poder da interação
É tornar todos iguais
Seja massa a multidão
É uma questão de Poder
Pra mais lucro acontecer
Todos com o mesmo feijão

Deixo então esta pergunta
Que ainda não tem solução
Num país de tradições
Que futuro elas terão?
O que será da cultura
Vivendo na ditadura
Dos livreiros, da opressão?

Piratas no fim das contas
Apoiavam igualidade
Hoje chamam de pirata
Quem age contra a maldade
E compartilha o que tem
Dando cultura por bem
Quem tem solidariedade

Cárlisson Galdino