Todo dia nasce um

– Aí madama, olha só, coisa fina aqui pra senhora!

Já fazia algum tempo que ela e a amiga estavam rodando pela Vinte e Cinco – aquela Meca brasileira da muamba e do descaminho – quando o caboclo a chamou. Trazia consigo uma caixa numa sacola. Ficou curiosa.

– Seguinte, madama, isso aqui é uma beleza. Filma, tira foto, grava em cedê, em devedê, dá pra ligar na televisão…

– Quanto?

– Negó é o seguin: acabei de levantá essa mercadoria ali do Carrefour. A placa lá dizia mil e setecentos contos. Deixo pra senhora por quatrocentos.

Sob os protestos da amiga, pegou a caixa, analisou, leu as funcionalidades da câmera (fazia tempo que queria uma assim), pensou um pouco.

– Duzentos eu dou.

– Quê isso, madama? A mercadoria é coisa fina! A senhora não acha isso em qualquer lugar não!

– Duzentos.

– Trezentinho, então…

– Duzentos e cinquenta. Pegar ou largar. Toma de volta.

– Não, não, tudo bem. Pode ficar. A senhora me convenceu. Dura na queda, hein? Dá os duzentos e cinquenta que eu vou zarpando, então.

Com um sorriso de vitória foi direto ao fundo da bolsa e, lá dentro mesmo, contou o dinheiro. Tirou a quantia certa e deu para o ansioso negociante. Este nem contou. Enfiou o dinheiro no bolso, olhou desconfiado para os lados, e sumiu no meio da turba que passava.

Feliz da vida com sua própria esperteza, chamou a emburrada amiga para um canto para ver se a máquina estaria com a bateria carregada para já estrear seu brinquedo novo. Abriu, rompeu o lacre, desempacotou, pegou seu brinquedo (mais leve do que imaginava) e procurou onde ligava, onde ficavam as baterias. De repente, com uma leve tontura, sentiu todo o sangue esvair do corpo enquanto lava derretida prenchia seu estômago – pois caiu em si e percebeu que seu brinquedo não passavo disso: um brinquedo.

Quase uma hora depois, ainda esbaforida e totalmente indignada, estava na delegacia mais próxima que encontrou acabando de contar para o delegado de plantão sobre o ultraje que acabara de sofrer. Terminado seu relato, olhou desafiadoramente para o sujeito que, incrédulo, a fitava bem nos olhos.

– Se me permite – começou ele, unindo as pontas dos dedos – acho que aqui temos duas situações que se complementam.

– Quais? – Empertigada, ela quis saber.

– Em primeiro lugar a senhora é BURRA!

– Como é que é???

– Aliás, minto. A senhora não é BURRA. A senhora é MUITO BURRA! Burra, porque saiu disposta a comprar muamba. Burra, porque comprou uma caixa sem ver o que tinha dentro. Burra, porque acreditou num cafajeste qualquer totalmente estranho. Burra, porque sabia que o que estava comprando poderia ser produto de roubo. Mas, sobretudo, MUITO BURRA porque teve a audácia de vir aqui na delegacia para reclamar de sua burrice.

– Mas, como assim…

– A senhora não tem noção, não é? Sabia que receptação é crime?

– Mas, mas…

– Vamos fazer o seguinte: como hoje eu estou bonzinho, a senhora vai sair daqui somente burra, tá bom? Contente-se com o papel que já conseguiu fazer. Porque se a gente continuar essa conversa, na realidade eu vou ter que pegar tudo isso que a senhora falou e usar como confissão. E quem vai pro xilindró é a senhora!

– E o…

– ADEUS!

Hora e meia depois, indignada, frustrada, com a amiga tentando lhe consolar – e duzentos e cinquenta reais mais pobre – eis que ela avista o malandro. Desta vez estava vendendo relógios “legítimos” para os passantes. Chegou até ele, desabafou, gritou, chorou, esperneeou. Queria seu dinheiro de volta.

Mas o caboclo, verdadeira face da indignação, enquanto apressado juntava sua mercadoria, limitava-se a categoricamente afirmar:

– Quê isso, madama? Num tenho nada com isso não! Nem te conheço! Nunca te vi antes!

E, mais uma vez, sumiu no meio da turba que passava.