A casa e a desigualdade

Outra ótima do Mino, ainda que de anteontem:

Um perfeito retrato da elite (elite?) brasileira, e mais especificamente paulistana, está hoje nas páginas do jornal Valor em reportagem assinada por Caio Junqueira. Muito bem feita e a seu modo implacável, embora redigida com extrema correção, sem descurar, nas entrelinhas, do senso de humor. Conta a passagem do ex-governador Geraldo Alckmin pela Casa do Saber, na qualidade de professor, a ministrar em três aulas um curso sobre “Eleição e Gestão”. A Casa do Saber tem convocado a minha atenção faz tempo, em virtude do auto-elogio implícito no seu nome. Aprendo, ao ler a reportagem de Caio Junqueira, que ela se apresenta como “centro de debates e disseminação do conhecimento que oferece acesso à cultura de forma clara e envolvente”. Mas não lecionam ali Kant e Maquiavel, Marx e Weber, e sim Geraldo Alckmin. Setenta pessoas participaram do curso ao preço de 300 reais por cabeça, além dos “paideias”, com acesso a qualquer curso por 4 mil semestrais. Junqueira relata que a larga maioria dos participantes, quase todos segundo entendi, consideram o governo Lula uma desgraça, quando não tem como um monstro, e atribuem a culpa pela eleição e reeleição do ex-metalurgico à insensibilidade do povo brasileiro. Achei especialmente notáveis dois registros. O primeiro. Uma médica de 42 anos afirma ser impossível fazer “mudanças estruturais” se o povo “não entende o que são essas mudanças”. Sempre imaginei que mudanças não há porque esta pobre elite ignorante, provinciana e feroz não as quer. O segundo registro explica tudo. Um funcionário do governo de São Paulo, de 29 anos, diz que a aula do curso sobre Problemas Brasileiros que teve menor participação foi a do professor Luiz Gonzaga Belluzzo, sobre a desigualdade social. Também pudera, digo eu, Belluzzo é autor da proposta, divulgada neste meu blog, pela qual diários e revistas deveriam sair com uma advertência do ministério das Comunicações estampada, respectivamente, na primeira pagina e na capa: Cuidado, este órgão de imprensa apoiou o golpe de 1964 e suas consequências. Imagino que o pessoal saiu da Casa do Saber e foi fazer compras na Daslu e na Expand.

O tráfico mapeado

Essa eu li no blog do Mino Carta. É de espanar…

Um livro de geografia, aprovado pelo ministério da Educação para alunos de sexta série das escolas publicas do Rio, oferece o mapa do tráfico na cidade outrora Maravilhosa. Ali aparecem, perfeitamente delimitadas, as áreas de atuação de cada quadrilha. Questionado, o ministério diz que o livro expõe a realidade do País. Trata-se, ao que parece, do reconhecimento de um estado paralelo. Sugiro que o livro seja distribuído também às delegações que participarão do Pan, a fim de instruí-las a respeito dos recantos de menor risco. Quanto a mim, encomendei um: quero aprender.

Hora de dormir

E então chegou a hora de dormir. Pelo menos, a da criançada. Todos no mesmo quarto, cada qual na sua cama.

Cubro o filho nº 1 e lhe dou um beijo de boa noite.

“Boa noite, pai.”

Cubro o filho nº 2 e lhe dou um beijo de boa noite.

“Bá noite pai!”

Cubro o filho nº 3 e lhe dou um beijo de boa noite.

“B’noiti…”

Apago a luz do quarto e no milésimo de segundo seguinte, o filho nº 3, coincidentemente de 3 anos, decreta:

– Paiêêê! Tá luuuz!

– Hein? Mas o papai já apagou a luz, filho.

– Tá luuuz!

– Ah! A do corredor? É pra apagar?

– É.

(Um detalhe: esse “É” dele é um negócio engraçado, posto que definitivo – vem lá do fundo do estômago e se manifesta como num sopro bem curto, encerrando qualquer questão de uma vez por todas. Ou quase.)

Então, apaguei a distante luz do corredor e já estava voltando para meu quarto, quando:

– Paiêêê! Tá luuuz!

– Como assim, filho? Papai acabou de apagar! Não tem mais luz nenhuma, não…

– Cártu…

– Quê? A do quarto do papai? Mas a mamãe tá no banho e daqui a pouquinho vem pra cá e vai precisar da luz, filho. Vamos fazer o seguinte: papai vai ler só um pouquinho e já, já apaga a luz. Combinado?

– Binádu…

Foi o tempo de me deitar, puxar o edredom, abrir o livro, e…

– Paiêêê! Tá luuuz!

Dali mesmo já soltei: “Filho, DÁ UM TEMPO! Nós já não combinamos que daqui a pouquinho o papai vai apagar a luz? Vai dormindo aí, que já já apago, tá bom?”

Silêncio.

Dez segundos depois:

– Paiêêê! Tá luuuz!

Nesse meio tempo a Dona Patroa chegou, contei-lhe (em tom de súplica) toda a desventura, e ela, pacientemente foi lá conversar com o pequerrucho. Ufa! Finalmente eu conseguiria voltar à minha leitura…

Alguns minutos depois ela voltou e se aconchegou ao meu lado, com frio. Foi o tempo exato de ela se aninhar:

– Paiêêê! Tá luuuz!

– SERÁ POSSÍVEL? TÁ BOM, TÁ BOM! JÁ VI QUE PERDI MESMO! EU APAGO A BENDITA DA LUZ E TODO MUNDO DORME FELIZ, TÁ BOM? TÁ BOM?

Apaguei a malfadada luz (pra não dizer outra coisa), me enfiei debaixo do edredom (confesso que ainda bufando) e mal tive tempo de fechar os olhos, quando ouvimos a vozinha dele no quarto ao lado:

– Paiêêê! Tá escuuuro!…