O passado bate à porta (I)

Dia de eleição. Como voto no mesmo lugar desde que tirei o título de eleitor, que, inclusive, é a escola estadual onde estudei da primeira à oitava série, é também uma oportunidade para rever velhos amigos e conhecidos.

Seção cheia, bem cheia. A fila dava volta no corredor. E eis que aquela moça simpática, a alguns metros de distância, sorri para mim e dá um tchauzinho…

Olho para a menina logo atrás de mim, a qual está absorta numa conversa com um rapaz – provavelmente namorado. Olho para a moça na minha frente, que, por sua vez, está examinando atentamente uma mancha formada no teto.

É. É comigo mesmo.

Sorrio e avanço alguns passos na direção da agora sorridente moça, a qual me disse:

– Olá! Tudo bem? Há quanto tempo, hein?

Aproveito – também sorrindo – para tomar-lhe da mão o título e examinar seu nome completo. Nada. Minha mente é um vazio. MUITO sem jeito, digo-lhe:

– Puxa, não fique brava, mas sinceramente não consigo me lembrar de você…

– COMO NÃO??? A gente estudou junto, tinha fulano, beltrano e sicrano na nossa classe! Lembro-me até de uma redação que você fez, que a cada frase você terminava com a frase “É claro”!

Sinto o coração encolher e um rubor subindo às faces. Diacho, do que é que ela está falando? Que raio de redação seria essa? Que terminava com “é claro”? Tem minha cara brincar com as palavras desse jeito, mas desde o ginásio?

– Olha, realmente NÃO me lembro, mesmo. Mas, também, né? Já faz mais de vinte e cinco anos, meus neurônios já estão numa fase de perder as sinapses…

Rimos um pouco e passamos a conversar sobre amenidades. Mas aquela sensação de mal estar permaneceu na pontinha do meu coração. Como diria uma amiga, “borboletas revoavam em meu estômago”…

Havia chegado a hora de ela votar, de modo que voltei para meu lugar na fila (que dava volta, lembram?) – ainda assim fiquei matutando. Foram necessários mais uns dez minutos, até que a lembrança me atingiu como uma bigorna!

– MAS É CLARO!

A moça que estava na minha frente olhou desconfiada para aquele sujeito grandalhão que estava falando sozinho.

Lembrei-me dela! Ainda não conseguia precisar o ano específico em que estudamos, mas a imagem me veio à mente: ela era bem magra, e na época já era meio que alta para a idade; seu cabelo era curto, preto e cheinho nas pontas (e não loiro como agora), e não consigo deixar de imaginá-la com uma blusa, se não me engano de tricô e de gola alta, feita com várias faixas coloridas – cada faixa, um fio de uma cor.

Lembrei-me mais com o coração do que com a mente, pois veio a sensação de que éramos bem mais que colegas de classe! Não, não namorados – até porque não namorei absolutamente ninguém da escola naquela época. Éramos amigos mesmo. Ademais, sempre tive muito mais facilidade de fazer amizades com as meninas que com os meninos. Em sua maioria, elas sempre tiveram bem mais o pé no chão que os demais rapazes, os quais só pensavam em futebol, bicicleta, etc, etc, etc.

Pena que não a encontrei pessoalmente para lhe pedir perdão (e não desculpas) pela memória cheia de buracos que tenho. Poderíamos ter relembrado com mais acuidade aqueles tempos. Mesmo assim consegui achá-la no Orkut, e pude fazer um mea culpa virtual Contudo, a respeito daquela redação, a do “é claro”, sinceramente não consegui me lembrar. Todo o material escolar que eu possuía daquela época já deve ter virado pó, e minha memória – que sequer conseguiu lembrar de pessoas queridas – deixou-me na mão também com relação a isso. Mas, dado o tempo decorrido, e as zilhões de situações pelas quais eu já passei desde então, era de se esperar uns lapsos desse jeito…

É claro.

0 thoughts on “O passado bate à porta (I)

  1. Adauto
    depois que vc ler a historinha que vou te contar, vai parar de se torturar por não ter se lembrado da mocinha logo de cara.

    Cidade: Lisboa
    Personagens: ela, dentista, morando em Lisboa; ele, Fisico Nuclear, morando em Coimbra durante a semana e indo pra Lisboa nos finde. Em comum, um filho de 7 anos.

    Cena
    Ele passa o final de semana em Lisboa com a familia, como faz desde que se mudaram para Portugal. Vai pra estação pegar o trem de volta pra Lisboa.
    Ela percebe que ele, sem querer, levou junto a chave do carro da família. Pega um táxi e vai correndo pra estação, na tentativa de alcançá-lo antes dele pegar o trem. Ela o vê parado na plataforma e vai na direção dele.
    Ele olha pra ela. De repente, ela nota que seu rosto se ilumina. Quando se encontram ele diz:
    – eu tava te olhando e pensando: engraçado, conheço aquela moça de algum lugar e não consigo me lembrar de onde… aí eu lembrei!

    Pois é… depois tem mulher que mata o marido e o juiz ainda condena!
    beijo

  2. Não pude deixar de imaginar aquelas cenas clássicas de filmes antigos, em preto e branco, com o mocinho de chapéu e sobretudo à porta do trem, e a mocinha, correndo em sua direção, também com um chapéu de aba dobrada com um meio véu sobre os olhos, colar de pérolas e uma pequena bolsa de mão…

    Elucubrações à parte, de fato esse mereceu o Nobel da distração contumaz. Creio que num tribunal a defesa poderia ser construída com base em alguma teoria jurídica que se situasse entre a insanidade temporária e a legítima defesa da honra!

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