Síndrome de Jerry Magüire

Nos últimos tempos (últimos dias, para ser bem exato), tenho me questionado acerca da “validade” de tudo aquilo que faço na minha área de atuação – Direito. Como recentemente ouvi de um colega, a nossa profissão traz uma carga de responsabilidade muito grande, pois atuamos exatamente na defesa de três áreas cruciais do ser humano: de seu patrimônio, de sua liberdade e de suas relações para com a sociedade.

E o que fica para trás? Qual meu registro no mundo? Na sociedade em que vivo? Papel, papel e mais papel. Tá certo que existe ainda a memória daqueles com quem convivemos e com quem trabalhamos. Mas quanto tempo isso dura? Alguns anos? Algumas décadas – se muito? Comecei a me questionar sobre o quê exatamente estou deixando para a posteridade, para a sociedade, para meus filhos, enfim.

E senti um grande vazio.

Há não muito tempo fui com meus pais no pequeno sítio de uma tia em Tremembé. Conversa daqui, fuça dali, eis que de repente meu tio surge com uns arreios e outros instrumentos – trançados de couro – que haviam sido feitos pelo meu pai em sua mocidade! E olha que meu pai já está no final de sua idade mais sexy (sexagenário), pois conta com seus recém-completados sessenta e nove anos.

Achei aquilo ao mesmo tempo tão bonito quanto surreal… Era um pedacinho da energia de meu pai que estava ali, materializado na minha frente. Guardado para a posteridade. Tudo bem, pode-se perguntar também “Mas por quanto tempo? Alguns anos? Algumas décadas?” – mas só aquilo já era mais do que tudo que eu já fiz…

Talvez seja a questão do trabalho manual, entendem? O confeccionar, o lapidar da coisa. Talvez seja a ânsia de provar que estive aqui, de existência de um legado de fato. Talvez também seja só mais algum sintoma da meia-idade, pois como diria um amigo, o Nanau, se a expectativa de vida de um homem é de, em média, setenta anos, já passei da metade disso e estou começando a fase descendente!

Provavelmente é por isso que tenho essa necessidade compulsória de escrever, de deixar um registro, de provar pro mundo que “Ei, estou aqui, eu existo!”. Apesar do ceticismo de pessoas próximas que vêem essas narrativas de Internet como a mais pura ficção (certo, Carreirinha?), posso garantir que a grande maioria traduz a verdade da vida de seus escribas – até porque (assim como eu) são levados pelo seu demônio interior a exteriorizar seus mais profundos sentimentos de uma maneira pública, muitas vezes anônima – ou “pseudônima” – para conseguirem descarregar a carga emocional represada em seu (nosso) dia-a-dia.

Voltando ao assunto, então por que não faço algo de concreto? Sei lá, uma escultura, uma pintura, por que não construo uma casa? Talvez (sempre esse maldito advérbio!) seja porque não tenho a habilidade – ou mesmo paciência – para tanto. Talvez eu tenha receio de começar algo assim e descobrir tarde demais que eu não conseguiria. Talvez porque eu, afinal de contas, ame a escrita e utilize a palavra como ferramenta e meio para perpetuar minhas idéias, esculpindo detalhadamente os textos, neles pintando as cores, tons, nuances e matizes de meus mais desvairados pensamentos, construindo um sólido e imaginário edifício composto de argumentações, pontos de vista e experiências de vida.

E nesse edifício, construído da mesma frágil e perpétua matéria que se tecem os sonhos, muitas vezes o leitor consegue explorar seus corredores e, independente do tempo ou ou da distância, compartilhar lado a lado comigo tudo pelo que eu já passei e que queria demonstrar – inclusive descobrindo sutilezas que sequer eu havia percebido quando assentava os tijolos de suas paredes, ou palavras de suas frases, como queiram.

Isso me lembra algo que li recentemente numa entrevista dada em uma nova revista sobre a Língua Portuguesa (aliás o Bicarato ficou encantado com essa tirada). Foi o Ziraldo quem declarou: “Sou fascinado pela palavra. Imagina você quando percebi que, em português, a palavra ‘palavra’ contém em si os termos ‘pá’ e ‘lavra’. Ela é a matéria-prima e ao mesmo tempo o instrumento para trabalhá-la.”

Enfim, é por tudo isso – e mais um pouco – que escrevo: essa necessidade primitiva, herdada dos ancestrais homens das cavernas, de deixar algum registro nas paredes das grutas para a posteridade. E esse anseio vem se tornando cada vez maior em mim: os meros sussurros de antigamente se tornaram bigornas martelando em minha cabeça, clamando por ação.

Não consigo deixar de perceber a ironia e futilidade de minha profissão – pelo menos no sentido de legado – o que acaba me levando àquele vazio que de início citei. E isso vem tomando uma proporção ainda maior na medida em que meus filhos crescem. Eles estão escrevendo sua própria história de vida, com suas próprias experiências, seus pequenos acidentes e mazelas, e a impressão que tenho é que algo está se perdendo e tenho que tomar alguma atitude…

Tá certo que algo já venho fazendo, ao ler alguns contos à noite para as crianças – que vêm demonstrando interesse crescente no desenrolar da estória. Na realidade, por falta de uma orientação religiosa mais específica (não vou muito com a cara desse negócio de trabalhar com a culpa do fiel), tenho lido a Bíblia para eles, reescrevendo o Velho Testamento num linguajar mais acessível para suas cabecinhas de dois, quatro e seis anos. Mas que não é fácil, isso lá não é. Mais uma vez, nas palavras de Ziraldo, sobre a dificuldade em se escrever um texto infantil: “O pior é o autor desavisado ter medo de recorrer a idéias difíceis por achar que criança não vai entender. Ter a tentação de ‘tatibitatizar’ a linguagem. Autor nenhum pode abrir mão das idéias de difícil alcance, mas deve anunciá-las de forma compreensível. (…) Consciência política em história infantil é babaquice. Um autor deve ser cúmplice da criança, não esclarecê-la.”

O conceito é tão simples quanto genial. Algo como dizer o óbvio. O que nos falta é capacidade de enxergar esse óbvio. Mas vou continuar tentando. Ainda chego lá. Pois se ele, com seus setenta e quatro, chegou; eu, com meus trinta e sete, ainda tenho algum tempo pela frente…

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