Questão de relevância

De repente, não mais que de repente, lá estava eu envolvido numa reunião de condomínio. Num prédio de mais de cem apartamentos conseguiu-se reunir o número mínimo legal de representantes suficientes para votar a destituição do síndico. Resolveram acabar com o jugo arbitrário que até então ele vinha exercendo, tomando decisões a seu bel prazer, desrespeitando a própria convenção do condomínio, fazendo terrorismo com os condôminos, falsificando atas de reuniões, faltando para com a verdade de um modo mais amplo possível e imaginável. A gota d’água aconteceu minutos antes dessa assembléia, quando não foi possível que os presentes entrassem no salão de reuniões pela porta da frente (sendo-lhes relegada a entrada pela copa), eis que o síndico – sabedor desse encontro – simplesmente pegou a chave do salão na portaria, enfiou no bolso e saiu, como se fosse dono e senhor absoluto do pedaço.

Mas isso não é relevante.

Num ato comemorativo à destituição do síndico (deposto por unanimidade dos presentes) eis que sentamo-nos à mesa de uma movimentada padaria, rodeados pelos mais diversos tipos de pessoas, falantes, caladas, tristes, alegres, sóbrias, bêbadas, e de repente, não mais que de repente, meu amigo, chapa, camarada e copoanheiro, recebeu uma ligação de uma antiga paixão e, depois de muitos anos, parece que uma pequenina chama ainda arde no peito de ambos. É o tipo de coisa que se percebe pelas palavras ao telefone, pelo olhar perdido no vazio, pelo sorriso que involuntariamente escapa dos lábios, pela alegria com que fala da pessoa após a ligação, rememorando os velhos tempos.

Mas isso também não é relevante.

Estando lá eu sentado, aguardando o fim da ligação do parceiro (e eventualmente metendo meu bedelho na conversa), eis que de repente, não mais que de repente, o rapazola da mesa ao lado, nitidamente bêbado (ou talvez cheirado, pelo jeitão dos olhos e das narinas), virou pro meu lado, se apresentou e resolveu puxar um proseio sobre política. Comigo. Resolvi dar trela pro desinfeliz. Tentou portar-se de modo democrático, fazendo parecer num primeiro momento que ouvia algo do que eu falava, mas logo em seguida passou a defender uma linha de raciocínio de que existiam políticos sacrossantos, quase merecedores de canonização de tão dedicados, desinteressados e incorruptíveis. Argumentei que na vida real não era bem assim, que é lógico que na política da mesma maneira que existe gente muito boa também existe gente muito ruim, mas que não deveríamos ver o mundo de um modo simplista, em preto e branco, mas sim de acordo com suas diversas nuances de cinza. Ainda assim, continuou com seu palavrório falando do “nosso querido” governador e futuro presidente (“seu”, eu corrigi), do “nosso querido” prefeito e futuro governador (“seu”, corrigi novamente), mas acabou por perder a esportiva quando fizemos (a essa altura a ligação já havia acabado) perguntas simples acerca de medidas óbvias que os “queridos” políticos dele simplesmente não tomaram, ainda que cientes. Chegou ao ponto em que resolvemos deixar o ébrio de lado, viramos as cadeiras e voltamos à nossa conversa, deixando-o a resmungar consigo próprio. Suas últimas palavras foram algo do tipo “todo petista é nordestino, analfabeto e ladrão”.

Mas nada disso é relevante.

O que de fato tem relevância é quando você vê que o caboclo que passou os últimos dez minutos enchendo o saco com seu discurso teocrático direitista xiita simplesmente derramou um copo inteirinho de cerveja no próprio colo (sim, a calça parecia ser de marca) e levantou meio que escorregando para ir embora. E mais. Passados outros dez minutos, quando também decidimos ir embora, estavam o frangote e seu amigo anabolizado brigando, meio que de escanteio, ali na área do caixa porque não conseguiam ter coordenação motora o suficiente para passar o cartão na maquininha. “Eu sei que você até tem o direito de chamar a polícia, mas sem pagar a conta daqui vocês não saem”, foi o que ouvimos. Não tivemos dúvida. Pagamos nossa conta, olhamos para os olhos injetados e furiosos do rapazelho, e, sorridentes, em uníssono dissemos para a moça do caixa: “ENTÃO TÁ TUDO CERTO E PAGO. OBRIGADO, VIU?”.

Há muito tempo que eu não ria tanto ao sair de algum lugar…