Quintana

QuintanaDefinitivamente sou um apaixonado pela leitura. Posso ser considerado um leitor contumaz e onívoro – pois tenho compulsão de ter que estar sempre lendo alguma coisa. Nem que seja bula de remédio.

No meu dia-a-dia tenho minhas leituras prediletas (algumas obrigatórias): clippings de direito, história e informática, listas de discussão de genealogia, gibis da linha DC Comics e Vertigo (sim, sou fã e colecionador), alguns tipos de mangás (do estilo Lobo Solitário), revistas de história do Brasil e revistas sobre a língua portuguesa.

Nesse último caso tenho comprado a excelente revista chamada Língua Portuguesa, que já está na sua décima edição (não, não estou ganhando absolutamente nada pelo marketing). Como eu somente arquivo as revistas na minha modesta biblioteca somente após tê-las lido completamente, ainda estou terminando a de número oito – uma que tem o Chico Buarque na capa.

Mal cheguei na metade da revista e já posso concluir que é uma das melhores da série até agora. Além da entrevista com o Chico, de uma curiosa reportagem sobre erros tipográficos históricos, de contar sobre a vida de alguns de nossos gênios literários que também trabalharam concomitantemente no mercado de traduções e de reclames (adoro essa palavra) publicitários, tem também um pequeno tributo à Mário Quintana, falecido em 1994 (alguém saberia dizer o porquê de a grande imprensa sempre utilizar a pesada palavra “morto” em vez dessa mais suave “falecido”?).

Mas você não sabe quem foi Mário Quintana? Tudo bem. Eu também não sabia. Segundo o texto, foi um mestre da ironia terna, um observador do cotidiano que sabia chamar a atenção para o frescor lírico contido no que é evidente, poetizando o óbvio. “Poesia e ironia não rimam a ouvidos consonantais e, por muito tempo, o tipo de lírica humorada de Quintana pareceu desprestigiá-lo e excluí-lo das listas nobres em que despontavam Drummond e Bandeira. Mas, como ele mesmo escreveu, a esperança ‘é um urubu pintado de verde’.”

Pra se ter uma idéia da verve humorística de Quintana, me permito transcrever uma parte do texto “O vírus da gripe literária”, de Rubem Alves, sobre ele:

Epitáfio é uma frase que se grava numa lápide, contando algo sobre o enterrado. Já escolhi a minha. Não é original. É a mesma de Robert Frost: ‘Ele teve um caso de amor com a vida…’

Quintana, sabendo que a morte o esperava em alguma esquina, escolheu a sua: ‘Eu não estou aqui…’ Já imaginaram? Caminhando pelo cemitério, as lápides se sucedendo graves e fúnebres. ‘Aqui jaz…’, ‘Aqui jaz…’. De repente os olhos batem na frase ‘Eu não estou aqui’, que é o mesmo que ‘Aqui não jaz…’. É possível evitar o riso? É possível evitar amar quem assim brincou com a própria morte?

(…)

Veio-me então uma idéia original: aos professores se oferecem cursos de atualização e reciclagem. A idéia é que serão melhores professores se tiverem mais informações! Duvido… A minha idéia é que houvesse para os professores cursos… Não! Poesia e literatura não se aprendem em cursos – ‘samba não se aprende no colégio’, disse Noel Rosa. Não sei que nome dar: experiências coletivas com a literatura, que só ocorrem quando há prazer, espanto, deslumbramento, susto, beleza, riso.

Primeiro, para que os professores ficassem mais ricos por dentro. Segundo, para que as aulas de todas as matérias se iniciassem com dez minutos de poesia. Aí os alunos aprenderiam que literatura não é algo que acontece em certas horas de certos dias. Ela é como o ar; está misturada com a vida toda. Quem lê Quintana aprende isso.

Lúcido, lúcido. Muito lúcido.

Além de seus livros e sonetos, Quintana também era autor de frases memoráveis, tais como:

– A imaginação é a memória que enlouqueceu.

– Mera ilusão auditiva graças à qual a gente ouve sempre “tic-tac” e nunca “tac-tic”… Depois disso, como acreditar nos relógios? Ou na gente?

– Democracia? É dar, a todos, o mesmo ponto de partida. Quanto ao ponto de chegada, isso depende de cada um.

– Quando alguém pergunta a um autor o que este quis dizer, é porque um dos dois é burro.

– É preciso escrever um poema várias vezes para que dê a impressão de que foi escrito pela primeira vez.

– O estilo é uma dificuldade de expressão.

– Contudo, não me sai da lembrança um professor dos meus tempos de ginásio que, ao dar-nos o tema para a Redação de Português, dizia: “Não adianta escreverem muito, meninos, porque só leio a primeira página; o resto, eu rasgo”. E assim nos dava, ao mesmo tempo, a primeira e a melhor lição de estilo, obrigando-nos a reter as rédeas de Pégaso e a dizer tudo (que, aliás, não podia ser muito) nas trinta linhas de papel almaço, contando título e assinatura.

– O que eu queria dizer é que todas, todas as coisas têm de ser dosadas com suspense, para poderem impressionar e encantar. / Mestra de estilo, feiticeira da arte narrativa, era aquela negra velha que nos contava histórias em pequeninos. Ficávamos literalmente no ar, nem respirávamos quando ela, encomprindando a corda, dizia arrastadamente esta longa frase, cheia de nada e de tudo: “E vai daí o príncipe pegou e disse…”

– Crise de estilo não existe. O que existe é crise de pensamento.

Mas, para mim, a melhor tirada de todo o texto, numa verdadeira demonstração de sua consciência linguística ao pontuar que uma negação não equivale ao inverso de uma afirmação, é a seguinte: “Amizade é quando o silêncio a dois não se torna incômodo. Amor é quando o silêncio a dois se torna cômodo.”

Preciso ler Quintana.

Definitivamente.